Angústia e estrutura do sujeito
Este trabalho é fruto de um cartel, que durou dois anos, e que se dedicou a estudar o Seminário 10 – A Angústia. Portanto, é uma leitura da psicanálise anterior a chegada da cadeia borromeana, mas que contribui, imensamente, para pensarmos sobre o estatuto do objeto a e sobre a ideia que Aurélio apresentou sobre o conceito de gozo e real. Já advirto que este seminário não é o ponto final do conceito de angústia, mas o começo. Sabemos que até o seminário RSI este conceito sofre algumas modificações. Mas pelo que li até agora, pude perceber que uma das diferenças entre o conceito de angústia deste seminário e do seminário 22 é que neste seminário a angústia está atrelada ao Outro, e no seminário 22 está atrelada a dimensão do registro do real, portanto do gozo. Só por este fato, o estudo do seminário já se justifica, uma vez que para começar a compreender esta difícil noção de gozo, penso que é necessário compreender o desenvolvimento que Lacan começa a fazer sobre o objeto a, neste seminário.
A minha proposta é discutir uma ideia que é colocada por Lacan que faz, ao longo do seminário, uma aproximação entre a estrutura do fantasma e a estrutura da angústia. Para deixar indicado o caminho que percorrerei no meu trabalho, apresento a questão que me fiz, que é a seguinte: sendo a estrutura do fantasma a mesma da angústia, o que opera a passagem de uma para outra? Isto é, por que a estrutura do fantasma afeta o sujeito de uma forma e a da angústia de outra se se tratam de uma mesma estrutura?
Para começar a responder essas questões, parto do ponto em que Lacan apresenta o quadro de divisão do sujeito. Neste quadro, Lacan vai fundamentar a lógica que organiza alguns elementos de sua álgebra – seu sistema formal de letras, que muitos chamam de álgebra lacaniana. O que podemos visualizar nesse quadro de divisão é a lógica que sustenta um dos pilares fundamentais do seminário que é: entre o sujeito e o Outro não existe uma medida comum, pois sempre resultará em um resto desse processo de divisão. É como se tentássemos dividir 7 por 6. O 6 sendo o divisor e o 7 o dividendo. Desta divisão, 7 dividido por 6, o resultado, o quociente, é 1,1666… e sempre terão dois restos: 1 e o 4. Este último sendo permanente. Sabemos, pois, que a este resto permanente Lacan vai identificar o objeto a. Mas, além do objeto a, outros elementos são decantados desse cálculo. Se fizermos toda leitura do processo divisão do sujeito, ficaria da seguinte forma: quantas vezes o sujeito (divisor) cabe no Outro (dividendo)? A resposta deste cálculo, o quociente obtido, seria: (A/). Isto é, o sujeito cabe no Outro quantas vezes for possível desde que o Outro seja faltante, seja barrado. O primeiro resto desta divisão seria a marca do Outro como desejante ($) e o segundo resto, o permanente, seria o “a”. A partir deste Seminário, Lacan vai passar a chamar este objeto a, resto do processo de divisão do sujeito, como objeto causa do desejo. Portanto o objeto a nunca poderia ser considerado um objeto da realidade, da consciência, do sujeito. Ele não é o alvo, mas é causa, é motor do desejo. O alvo do desejo é o objeto recoberto pelo imaginário. Assim, o objeto a seria o número que indica que para que exista um sujeito desejante, não deve haver encaixe perfeito entre o sujeito e o Outro.
Gostaria de ressaltar que este cálculo proposto por Lacan não segue a risca as normas matemáticas, pois não se trata de matemática, e sim de um sistema formal denominado álgebra lacaniana.
Pois bem, a partir deste cálculo, como pensar a estrutura do fantasma e da angústia? Sobre a estrutura do fantasma, Lacan é categórico em dizer que está do lado do Outro. Isto nos faz pensar que se a montagem do fantasma está do lado do Outro, cabe ao sujeito responder a este fantasma. Penso que aqui acontece o que Lacan disse, neste seminário, da criação, por parte do sujeito, de uma falsa demanda. Falsa demanda não no sentido de que seja algo inexistente; mas de que seja algo construído pelo sujeito, uma demanda suposta, uma vez que o fantasma está do lado do Outro. Portanto, o sujeito constrói uma suposta demanda no Outro que tenta responder a partir de um ideal imaginando que de alguma maneira este feito pode ser alcançado. Não consegue alcançar porque não é suficientemente capaz e competente de fazê-lo. Outras pessoas conseguem, menos ele. É assim que o campo sintomático está, então, colocado e organizado. Tenta-se, a partir de um recurso imaginário, obturar a falta do Outro, anular o (A/). Lacan vai dizer que o sujeito veste imaginariamente o objeto a para responder a esta estrutura fantasmática com o único objetivo de não se a ver com a falta do Outro.
Agora falarei um pouco da estrutura da angústia para tentarmos trabalhar a afirmação de Lacan de que a estrutura do fantasma é a mesma da angústia. Lacan, em vários momentos, diz que a angústia é um afeto que surge quando falta a falta. Isto é, quando a falta do Outro (A/) pode desaparecer é que o afeto da angústia aparece como um sinal. Vai afirmar, em vários pontos do seminário, que a angústia surge quando algo que deveria ficar oculto, aparece. Articula este algo que aparece e que produz angústia com o objeto a. Se retomarmos o cálculo da divisão do sujeito para tentar ilustrar essa ideia, é como se por algum acidente o cálculo 7 dividido por 6 desse um resultado exato, sem resto, o que indicaria um encaixe perfeito entre divisor e dividendo, entre o sujeito e o Outro. Isto, como vimos, implicaria numa anulação total do (A/) e o Outro não seria faltante e nem desejante, consequentemente tampouco o sujeito.
No entanto, penso que temos de pensar sobre essa ideia de aparição do objeto a. Aparece onde e como? Uma vez que é um objeto totalmente abstrato, pensado a partir de um cálculo lógico que não corresponde com a realidade concreta. Inclusive, para não deixar dúvidas de que esse objeto a não participa de nossa realidade concreta, Lacan vai dizê-lo a partir de figuras topológicas. Bom, penso que é importante abrir um parênteses aqui. Quando estou dizendo sujeito e Outro não estou falando de seres concretos, pois não se trata, como Lacan já nos advertiu, de uma ontologia. É importante ressaltar que quando digo “lado do Outro” e “lado do sujeito” não se trata de dois entes, por exemplo, a mãe e o bebê ou a criança. Ao contrário disso, trata-se de dois lugares lógicos e totalmente abstratos que respeitam as leis da álgebra lacaniana e que nos servem para pensar a estrutura do sujeito; no meu trabalho, por exemplo, a estrutura do fantasma e da angústia. Penso, inclusive, que seja por isso que Lacan utiliza o recurso matemático para falar disso. Para nos advertir que, ao teorizarmos, não devemos nos apoiar, demasiadamente, em entes, em pessoas, para que não façamos da psicanálise uma ontologia.
Fechando o parênteses e retomando a estrutura da angústia. A partir do texto de Lacan é afirmado que a angústia surge não pela aparição do objeto a para o sujeito, mas, ao invés disso, surge quando o sujeito se depara com a aparição daquele que evoca o objeto a, portanto o Outro em sua dimensão devoradora e enigmática. Se pensarmos no caso do Homem dos Lobos e nos interrogarmos o porquê do sonho dos lobos ter produzido tamanha angústia, podemos chegar à conclusão de que os lobos trepados na nogueira, enquanto elementos que apareceram para o paciente de Freud, não eram o objeto a. Ao contrário disso, podemos pensar que os lobos representavam aquele que evoca o objeto a através do paciente de Freud. Assim, a angústia sinal surge quando o objeto aparece e o sujeito está identificado a ele, ao objeto a. No caso do Homem dos Lobos, ele estava identificado ao objeto a olhar – relacionado à pulsão escópica.
Se considerarmos, juntamente com Lacan, que o objeto a corresponde ao que Freud chamou de objeto parcial da pulsão, talvez possamos pensar na principal diferença entre a estrutura do fantasma e da angústia. Na estrutura do fantasma, mesmo que o sujeito se coloque como um objeto que tenta tamponar a falta do Outro, este objeto está vestido imaginariamente com o brilho narcísico de um suposto ideal. Por outro lado, se pensarmos na estrutura da angústia, o objeto que aparece é o objeto pulsional sem a vestimenta imaginária, portanto totalmente fragmentado. O sujeito estaria identificado ao objeto pulsional oral, anal, escópico ou invocante. Objetos de exclusivo domínio do Outro que teriam propriedades de ser uma merda, dejeto, fétido, mastigado, invadido, destruído, dentre outros.
Outra diferença importante entre a estrutura do fantasma e a estrutura da angústia diz respeito aos efeitos que cada estrutura produz. A estrutura do fantasma, como dissemos, tem prioridade de organizar o campo sintomático do sujeito. Portanto, de estar enredado numa falsa demanda, construída pelo próprio sujeito, e que o faz sofrer. Por outro lado, os efeitos da estrutura da angústia atentam muito mais contra a vida do sujeito, podendo levar ao suicídio ou a atuações que causem danos graves e irreversíveis ao sujeito. Para não chegar a angústia, o sujeito tem dois recursos: a passagem a ato e o acting-out. A passagem a ato sendo o recurso mais radical, em que o sujeito se precipita para fora da cena para sair dessa identificação maciça com o objeto a pulsional; e o acting-out sendo um recurso que o sujeito tem para solicitar uma intervenção do analista para que o retire dessa identificação. É uma mostração dirigida ao analista, que está na mira transferencial, em que se pede uma intervenção que possa resgatar os recursos simbólicos e imaginários.
Para encerrar e ilustrar essa ideia de acting-out como efeito da angústia, apresento um fragmento de caso, que alguns já conhecem pois trabalhei num contexto mais íntimo e privado. Trata-se de um caso encerrado e antigo de uma adolescente. Foi levada com a queixa de que tinha sérios problemas com o cumprimento das regras na escola. Era agressiva, desrespeitava todas as figuras de autoridade, mas o que mobilizou os pais foi o fato de que começou a roubar os colegas e a escola. Era uma filha adotada e naquele momento os pais diziam que estavam pensando que sua filha não teria mais jeito, que ela era assim mesmo e que só lhes restaria assistir, passivamente, o terrível futuro que estava reservado a ela. Atribuíam essas características aos pais biológicos. A filha, segundo eles, tinha herdado os genes ruins dos pais. A paciente não gostava de falar sobre a adoção. Talvez, o que fosse insuportável para ela era saber que foi “abandonada” pelos pais, uma vez que tinha irmãos biológicos dos mesmos pais e que não foram retirados e nem dados para adoção. Pois bem, quando a adolescente chega até mim, tudo acontece sem a menor dificuldade. Brinca, fala, interage, tudo aparentemente bem. Responde docilmente a minha demanda. Percebam aqui a estrutura do fantasma e o lugar de não analista que ocupo. Se demando tudo isso, vacilo de meu lugar presença de analista. Mas, de repente, começa a se tornar agressiva, inquieta e começa a estragar os brinquedos que trazia ou que tinha em minha sala. Arremessava os brinquedos na parede e, sem querer querendo, acertava em mim. Neste período fico sabendo, através dos pais, que estes decidem seguir suas vidas e, consequentemente, deixar que a filha se vire – isso apenas com 13 anos! Deixa a filha morando com a irmã mais velha e alugam um apartamento para os dois. Logo em seguida a adolescente não aparece mais nas sessões e nunca mais a vejo. Muito tempo depois repensei este caso; para ser mais preciso, quando comecei a estudar o seminário 10. Penso que, talvez, essas destruições dos brinquedos era um acting-out, em transferência, para me mostrar a identificação que estava fazendo com esses objetos estragados, quebrados, destruídos, merdificados, que só lhes restariam a lixeira como destino. Afinal, mais uma vez estava sendo dejetada pelos pais. Talvez, se pudesse ter feito alguma intervenção neste momento, a história poderia ter sido outra; ela poderia ter conseguido se afastar dessa identificação com o objeto pulsional e poder falar, simbolizar, como era para ela ter uma história em que se sentia como um objeto quebrado, estragado, que só lhe restava o abandono, o lixo. Acredito, também, que boa parte desta elevação do nível de angústia era de minha responsabilidade, por demandar excessivamente que falasse, que brincasse, que cumprisse o protocolo. Penso que por não ter podido ocupar a função de analista, ocupei o lugar daquele que evoca o objeto – o Outro da angústia. O que lhe restou, como única alternativa, foi deixar-se cair da sessão, precipitar-se para fora da cena que estava identificada ao objeto pulsional.
Autor: Edinei Hideki Suzuki
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