O Sujeito e Sua Escrita Através do Sinthoma
Primeiramente gostaria de dizer algumas palavras sobre a importância do presente trabalho para mim. É um trabalho que é fruto dos efeitos do generoso ensino dessa importante figura no cenário psicanalítico, Aurélio Souza, que está aqui nos escutando e nos prestigiando; mas, sobretudo, este trabalho que compartilho com vocês, hoje, testemunha o entusiasmo que se renova a cada texto e seminário lido e, principalmente, testemunha a renovação do meu desejo de acolher o sofrimento
de nossos pacientes.
Acolher o sofrimento alheio a partir de uma posição que para mim é nova, mas que trouxe efeitos que acredito que favorecem a minha sustentação do desejo do analista. Trata-se de uma posição que faz da psicanálise lacaniana uma prática respeitosa, acolhedora e que tolera as manifestações sintomáticas e dificuldades de nossos pacientes, uma vez que pode ser o melhor que o sujeito pode ter naquele momento. Enfim, podemos fazer dela uma prática suave. Mas vejam bem, não confundamos tudo isso o que disse. Conduzir uma análise ou deitar no divã não é, de maneira alguma, algo fácil. Muito ao contrário, todos sabem da dificuldade que é isso!
Para ilustrar o que estou dizendo e marcar a diferença entre a “velha escuta” (porque eu utilizava) e uma “nova escuta” vou contar uma anedota sem mencionar nomes. Certo dia estava lendo, com interesse e entusiasmo, um texto de um psicanalista de renome. Ao descrever um caso, disse que seu paciente, em certa sessão, estava enchendo linguiça e o que dizia era somente para agradá-lo. Fazia associações que não eram associações, mas falas vazias. Neste exato momento simplesmente perdi todo o interesse sobre seu texto. No entanto, quem aqui já não pensou isso de nossos pacientes: “esta sessão não rendeu; o paciente não trouxe nada de novo; só se defendeu e resistiu; etc.”. Confesso que já fiz dessa forma e por isso acho importante compartilhar algumas questões que surgiram a partir do texto citado: o que dava ao suposto psicanalista o direito de supor que o que o seu paciente dizia era uma fala vazia destituída de verdade? A partir do quê, de quais referências, que podia fazer tal afirmação de que seu paciente estava enchendo linguiça?
Depois de ter começado a me aproximar das formulações lacanianas que irei apresentar hoje, vi a extensão e compreendi a potência da recomendação que Aurélio faz para todos os seus pacientes, que é: “Tudo o que disser em análise, eu acredito; isto é, o tomo como Verdade”. Esta recomendação que faz Aurélio para seus pacientes vai na contramão do modelo clínico do psicanalista citado, pois este modelo – do psicanalista da anedota – parte de um suposto de que existe uma Verdade inconsciente que o ego recalca e cuja função do analista é encontrar a tal Verdade. Portanto, a Verdade estaria no interior e o analista deve, a partir do exterior, arrancar tal Verdade. O analisante mente e o analista é responsável por retirar, arrancar, encontrar a verdade do paciente através dos atos falhos, dos sonhos, dos chistes, etc. Este, para mim, é o velho modelo.
Pois bem, é justamente sobre um fazer analítico que meu trabalho versa e que vai de encontro com esta recomendação que Aurélio faz para seus pacientes, que coloca a verdade não como algo que deve ser encontrada, e sim como construída. E foi pensando nesta ideia de construção que pensei o título do meu trabalho: “O Sujeito e sua Escrita através do Sinthoma”. Quando o pensei, intentei jogar com um duplo sentido, com um equívoco. Deste título, podemos depreender dois significados: 1) de que o sujeito escreve algo através do sinthoma; ou 2) o sujeito se escreve, se constrói, através da escrita do sinthoma. Optei, então, pela segunda acepção. Neste sentido, se produz uma frase incômoda, uma vez que a tendência, para aqueles que não têm intimidade com o tema, seria pensar que para que haja escrita é necessário a existência prévia de um sujeito. A segunda acepção do título afirma justamente o contrário, de que o sujeito surge na medida mesma em que começa a escrever o sinthoma, isto é, se produz simultaneamente ao ato de escrever.
Para aclarar, faço uma comparação entre dois modos de se pensar o sujeito que está em Lacan. No Seminário 11, por exemplo, o sujeito é o que está entre dois significantes. Sua principal característica é a de ser evanescente e obedecer uma pulsação temporal. No entanto, no Seminário 23, Lacan afirma que há sujeito quando ocorre um ato de fala que se propõe a construir uma verdade, através da escrita do sinthoma (p. 31).
Sinthoma, aqui, é com th. É uma forma de escrita antiga que Lacan utilizou no seminário 23 para aludir a um elemento que faz junção, que enoda a cadeia borromeana, enlaçando Real, Simbólico e Imaginário. Aqui já lhes adianto que existe uma divergência entre os psicanalistas sobre este conceito. Alguns acreditam que o sinthoma serviria apenas para os casos de psicoses; e outros acreditam que o quarto nó, que é o sinthoma, está presente em todos os sujeitos pois se trata de um elemento singularizador, isto é, que regula o funcionamento de cada um. Neste sentido, então, acabaríamos de vez com a ideia de que existe a tão famigerada ideia de estruturas clínicas estanques e permanentes. Há, ao invés disso, modos de funcionamentos do sujeito (psicótico, neurótico e perverso) que são efeitos de um enodamento através do sinthoma.
Tenho razões para acreditar, a partir da leitura do seminário, que o sinthoma está presente em todos os sujeitos, e não somente em psicoses, e que é passível de sofrer deslocamentos, ser reescrito a todo o momento em que o sujeito se coloca a falar. Lacan, ao mostrar como se opera na escuta jogando com a homofonia, com as partículas das frases, com as letras, faz a seguinte afirmação: “temos apenas o equívoco como arma contra o sinthoma” (p. 18). Isto nos leva a pensar que existe um sinthoma, anterior, que regula o funcionamento do sujeito, mas que com a análise podemos operar deslocamentos através dos equívocos produzidos pelo paciente reorganizando a cadeia borromeana.
Ademais, Lacan afirma, também, que o sinthoma é uma pai-versão. Isto é, uma versão construída do pai que organiza o funcionamento do sujeito, pois, como vimos, faz a amarra entre as 3 cordas: Real; Simbólico; e Imaginário. Lacan, portanto, diz que a análise permite, através dos equívocos, reescrever novas versões do pai para reorganizar a estrutura do sujeito; o que pode resultar em menos sofrimento. Gostaria de frisar, mais uma vez, que a partir desta leitura, deste modelo teórico, fica insustentável a ideia da divisão das estruturas clínicas (neurose, psicose e perversão) como organizações subjetivas estanques; fixas e eternizadas. Pois, neste modelo teórico, por exemplo, a forclusão do nome-do-pai se trata apenas de uma versão do pai escrita pelo sujeito, que produz efeitos psicóticos. Assim, o sujeito poderia reescrever uma nova versão do pai, um novo sinthoma, que pudesse sair dessa posição psicótica. Portanto, o sujeito não é mais vítima do Outro. O sujeito passa a ser
responsável por seu sofrimento pois é de sua responsabilidade a organização e o enodamento da cadeia borromeana através da escrita do sinthoma.
Um outro ponto que está contemplado no meu título e que foi apenas abordado tangencialmente até aqui, é o termo escrita. Isto é fundamental para se pensar este outro modelo de clínica que não é mais pela via do significante e do significado e sim pela via da letra, do fonema, do som, da polifonia. A impressão que tive do seminário 23, após este cartel, é que a tônica está nesta temática da escrita e não de Joyce. Joyce é apenas o suporte para Lacan sustentar este modelo clínico que não é mais da ordem da escuta e sim da leitura. Portanto, o analista não escuta, mas lê. Muitos leitores deste seminário ficam tão presos à discussão se Joyce era ou não era psicótico, se o sinthoma faz ou não faz suplência, que deixam escapar algo que insiste em aparecer em quase todas as páginas, que é a fundamentação e ilustração de um outro modelo clínico: a passagem do significante para a letra.
Após o término do Cartel, nos momentos em que ainda estava saboreando todos os enigmas que contemplam o seminário 23, vinha sempre a pergunta: “Por que Joyce?”. “Por que Joyce fisgou tanto Lacan?”. Por enquanto, a resposta que encontrei é a que compartilho hoje com vocês: que Joyce apenas ilustra o conceito de escrita e leitura em psicanálise. Acredito que Lacan encontra em Joyce o suporte daquilo que o analista deve fazer em análise, que é transformar significantes (a fala do paciente) em letras, em escrita. Isto não significa que o analista deva ficar com papel e lápis na mão escrevendo a fala do paciente, e sim de poder pensar que os significantes e as palavras são, em análise, um aglomerado de letras que produzem sons. Está ai, talvez, o encantamento de Lacan por Joyce, pois Joyce faz exatamente isso: subverte toda regra gramatical e faz dos significantes apenas aglomerados de letras que emitem sons, que podem ou não ter sentido. Para ilustrar essa ideia, que é totalmente abstrata, me apoio em Joyce para dar um pouco de concretude a essa proposta de transformar significantes em aglomerados de letras. Vou ler uma citação de Joyce e escutem a minha fala:
“rolarrioanna e passa por Nossenhora d”Ohmem’s, roçando a praia, beirando ABahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de Howth Castelo Earredores”.
“rolarrioanna (rola; rolar; lar; larri; lá, ri; rio; riu; riu Ana; ã? na…?; etc.)
Enquanto eu lia para vocês essa citação de Finnegans Wake de Joyce, certamente um sentido foi produzido através dos sons emitidos, pois ainda estava no plano do significante, portanto da escuta. Mas agora, quando projeto essa citação e todos são capazes de ler o que estava escrito, podem perceber que alguns significantes são apenas aglomerados de letras que emitem sons destituídos de um referido significado. Portanto, seria exatamente esta manobra que deve ser feita na análise quando se propõe fazer a passagem de uma escuta da fala para uma leitura das letras do analisante.
Neste sentido, então, não são os significados dos significantes que afetam o analisante. O que passa a afeta-lo é o som que as letras são capazes de produzir e que fazem eco no sujeito. Quando estes ecos são produzidos é que podemos considerar que tocamos em pontas de real. E a partir desses ecos é que permitimos ao analisante ir rescrevendo um novo sinthoma que possa regular seu sofrimento.
Para finalizar, cito um trecho de Lacan que está na página 93: “é por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de se livrar do parasita falador de que lhes faleis há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala”.
Autor: Edinei Hideki Suzuki
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