O Trabalho de Corte e Costura na Clínica Analítica
Se, de um lado, comparece aquele que pela primeira vez experiencia a psicanalise trazendo consigo um mal estar, dor, sofrimento, sintoma, demandando uma resposta, um alivio para o desconforto. Do outro, como diz Jerusalinsky (2005), está aquele que oferece seu ato ao risco, ao acaso, ao que for acontecer… ao que vier acontecer. Não está a espera da sorte, e não somente se deixa levar pelo acaso, mas sim, ao que for acontecer, pois em seu íntimo, sabe-se que virá um acontecimento a referendar ou desmentir aquilo que foi lançado em palavras.
Porém, aquele que fala não sabe que, com muito custo, vestiu a particularidade de seu desejo com uma roupa apropriada para a ocasião, conforme o hábito de todos. Assim, pagou o preço pela indumentária, conformando-se com a expectativa do outro, cedendo ao seu desejo. Agora, procura uma ajuda para a roupa que ficou apertada demais, ou larga demais, deixando o sujeito embaraçado com tamanha exposição. Outras, encontrou com aquele que, de vestes andrajosas, veio cheio de inibições, culpas e pesadelos.
O destinatário deste pedido, aquele que escuta e acolhe a demanda, sabe que deve fazer um trabalho minucioso, detalhado, artesanal, que a veste escolhida é única, não dá para colocar em outra pessoa. Está advertido, por um longo trabalho em sua análise pessoal, que não deve impor o seu tipo de remendo, a sua cor, o seu tecido, tamponando buracos necessários para aquele que veste. Seu dever é escutar, daquele que traja, o que trouxe consigo, os fios do significante que se entrelaçam, formando um tecido.
Assim, o trabalho de costura e descostura inicia, contornando os furos já existentes, fazendo pontos nas peças que estão soltas, alinhavando-as… tem o cuidado de deixar a peça sem uma costura definitiva, pois nunca sabe se será necessário rever a peça e ele, o analista, terá que voltar, junto com o paciente, para desfaze-las e refaze-las outra vez.
Certa vez, no início de seu trabalho, ocupando esta função (ainda) de costura, escancarou o sujeito, arrancando-lhe as vestes do recalque de uma vez, foi agressivo, causou angustia, desvelou demais o desejo encoberto… ofendeu demais o Eu. Outras, alfinetou com a agulha, caindo do seu lugar de analista, impondo a sua costura e o seu molde, encontrando assim sua resistência em prosseguir com o trabalho.
Mas leu e aprendeu; (desta vez não só em Lacan!), mas com Fernando Pessoa, algo que tocou em sua função:
“Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos”. (PESSOA, Fernando p. 164 2004).
Compreendeu que o saber está naquele que escreve o texto e é o autor de sua própria vida, apesar deste não lembrar do resto, e tem seus motivos para ter apagado… E como os sentidos são diversos, não cabe escrever em cima, calando o autor.
Além da sua dificuldade de ocupar este lugar; o sujeito ali em questão, que comparece para associar e tecer o tecido significante, começa a crer que a roupa que o analista usa, seu semblante, é o melhor… quer recomendações, dicas, orientações, quer usar o involucro, identificando-se imaginariamente com ele. Cabe o analista abster-se deste lugar de modelo, mestria, identificação, pois sabe que cada experiência é singular, não se trata do seu ser e nem da sua opinião, sabe que a roupa que lhe coube é só sua e sabe que assim como é para o analisante; e com sua ética e desejo, maneja a transferência, entregando a tarefa de costura ao demandante, permitindo que o desejo do sujeito apareça.
Aquele que demanda estranha o lugar que compareceu e a que veio ocupar. Pensou que fosse um lugar de tricotar: contar e escutar fofocas, dicas, trocar ideias… pensou que fosse de costurar: saber andar na linha, cezir os furos, remendar os buracos… e para a sua surpresa, percebe que é um lugar de corte!
Soler (1991) nos Artigos Clínicos cita o equivoco e o corte como exemplos de interpretação de Lacan:
“Tanto o equívoco como o corte são designados em função da fala: trata-se de um dizer nada, na medida em que o analista responde com o equívoco, portanto não responde no nível do significado, da nomeação do objeto, para suturar a falta. O dizer nada provoca uma equivocidade no discurso do analisando e provoca também efeitos. Privilegiei o corte, por operar no nível de S1 e S2, ou seja, por operar nos intervalos da cadeia significante e, como diz Lacan (1953, p. 315) “interromper a conclusão para a qual se precipitava o discurso do analisante”; e o equívoco, por estar do lado da enunciação.”
O analista, no lugar de semblante do objeto a, convoca o analisante a desfiar os fios do tecido discursivo, convida-o a costurar de um outro jeito, do seu jeito, com a sua costura, tecendo na metonímia do desejo as novas tramas do mesmo fio.
Este trabalho de corte e costura não é fácil, afinal se permitir desfiar o que há muito tempo vinha sendo construído é contar com a recusa, vacilações, rever o narcisismo. São duros os percalços que é a caminhada, Cuesta (2013) diz que longe de parecer esta caminhada como uma caminhada ao matadouro, que causa horror e pânico aos que pretendem começar uma análise, lembra que é a única via para que nossa existência possa ter menos mal-entendidos.
“Quanto tempo, dinheiro, libido são gastos, supondo estar no caminho “certo” para atingir um ideal por meio do qual se supõe satisfazer esse Outro que determina? Quantas repetições de fracassos se é capaz de suportar por não poder confrontar-se com a castração, por estar atrelado a ser objeto de seu fantasma?”
No final, não há mais lugar para os ideais nem para as ilusões imaginárias, e sim permitir que o sujeito construa uma estória para ele, um olhar melhor para si. Parafraseando Forbes (1997 p.182) o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério, dissocia dor e relato da dor, provando que frequentemente se sofre mais pelo que se conta do que pelo que se sente. “Há sempre um excesso, um ridiculo a suportar na vida; o ridiculo é o particular que não se encaixa em nenhum universal” até chegar em um lugar que não precise usar as vestes imaginarias, que possa encontrar com sua castração e consenti-la.
Autora: Michelle Hattori Fuziy
Referências Bibliográficas:
CUESTA, Silvia Esther Soria de. “O dificil lugar de não-ser do psicanalista.” In: Recortes em Psicanálise. Revista de Psicanálise. Ano II. No 3. Fev de 2013.
FORBES, Jorge. “Ridículas palavras recalcadas” In: Psicanálise ou Psicoterapia. Forbes org. Papirus: SP, 1997.
JERUSALINSKY, Alfredo. “Quando fala um analista”. Revista da A.P.P.O.A no. 29 – dez.2005
PESSOA, Fernando. “Livro do Desassossego”. Companhia das Letras: SP. 2004 2a ed.
SOLER, C. Artigos Clínicos. Salvador: Fator, 1991 In: RUSSO, Roberta Luna da Costa Freire. Corte e costura: a interpretação na neurose obsessiva. Stylus (Rio J.) [online]. 2012, n.25 [citado 2013-09-16], pp. 137-142 . Disponível em: . ISSN 1676-157X.
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