Repetição e Lugar do Analista
Ao estudar o tema da Repetição na Psicanálise ao longo desse ano, verificamos que ela faz parte da estrutura do sujeito, estando atrelada ao fantasma e ao sintoma. Desta forma, é material de trabalho numa análise. Neste percurso, ganhou especial destaque para mim o “objeto a1”, que está diretamente relacionado ao conceito e que também comparece num outro estudo do qual participei, que discorre sobre os Quatro Discursos de Lacan. No discurso analítico o analista ocupar o lugar de “objeto a”. A pergunta que desenvolvo ao longo deste trabalho é acerca desse objeto nessas duas posições: a passagem do analista, de “objeto a” (objeto-mais-de-gozar), para “objeto a” (sustentador da função objeto causa de desejo), e partir disso, pensar o trabalho do analista com a Repetição.
Para isso, considero ser necessário fazer um percurso com o “objeto a”, tanto na Repetição quanto no Discurso do Analista.
1) A Repetição é constituinte do Sujeito
Lacan (1964/1985) pontua que na Constituição de um Sujeito, ao ser marcado pelo Outro, a linguagem faz um buraco na estrutura e o sujeito perde algo, que ele denominou de “objeto a”. A partir disso, ocorre uma divisão entre o sujeito e o objeto de satisfação. Isso produz uma desorientação; no humano a pulsão não possui um objeto unívoco, como no instinto do animal. O sujeito, a partir disso, fica para sempre dividido2.
É em função dessa separação que existe a repetição; na tentativa de reencontro desse completamento. Porém, nessa busca incessante, o que se encontra a cada vez é diferente da anterior. Quando se relança a necessidade, entre o que se esperava e o que se encontra, formasse uma abertura, que funda a repetição.
2) A repetição está atrelada ao sintoma e ao fantasma
Por outro lado, essa experiência de perda não é somente do lado do sujeito. Para ser marcado pela linguagem, o significante é retirado do campo do Outro, deixando-o com uma falta3. O Outro, quando fala, deixa a marca de sua falta. Esse primeiro traço seria o equivalente ao Desejo Materno, o primeiro com o qual o ser é nomeado, a partir de identificar-se com o que falta ao Outro. Assim inicia a construção de seu fantasma.
Como uma paciente que se queixa de que não consegue dar seguimento aos projetos, fica estagnada. E diz que quando criança sua mãe perguntava se ela ia viver pra sempre debaixo de sua saia. A mãe tem um cargo de gerência “e movimenta tudo”. Ou outra que considera que todos conspiram contra ela, e diz que em sua infância sua mãe falava mal dela, nada do que ela fazia era bom. Ou ainda outra que chega sentindo-se cobrada pelo marido e pela chefia, refere que seu pai dizia que ela o cobrava, pedia coisas demais. Cristalizado ali em sua posição de objeto, faz sintoma, inibição ou angústia. Disso o eu nada sabe.
A criança deseja o desejo do Outro, e se coloca, num primeiro momento, enquanto objeto que completa o Outro, o objeto a. Ao mesmo tempo, a criança joga com a possibilidade de o Outro perdê-lo. Joga com a ausência de seu ser para ver a reação do Outro, colocando-se como objeto causa de desejo do Outro (Lacan, seminário 11 apud Rabinovich, p. 79, 116, 2000). Vide as crianças que se perdem nos mercados, ou que brincam de morrer, ou com a própria morte. Uma paciente que dizia, em sua infância, construir cenas de suicídio para ver o que acontecia. Muitos desejos suicidas passam por aí, os pacientes ficam imaginando como as pessoas lidariam com sua morte, sentiriam falta, não sentiriam?
3) Lugar do analista e o trabalho com a repetição
Conforme vimos, a repetição é decorrente desse processo de estruturação do sujeito, por isso Lacan coloca que não é algo de que se possa ser curado. Por outro lado, a repetição deve ser não só considerada, mas também incluída no trabalho da análise.
A partir disso, como se trabalha com a repetição? Essa questão será pensada a partir do lugar do analista nos discursos propostos por Lacan. De acordo com Lacan (1969-70/1992) o agente, no discurso do analista4, é o objeto a5.
Pensando então na pergunta colocada no início de meu trabalho, tenho condições de situar agora que o primeiro “objeto a” a que me refiro, diz respeito ao lugar que o analista, quando não ocupando essa posição, em seu processo de constituição de sujeito, se colocou enquanto objeto mais-de-gozar, na tentativa de completar seu Outro. Já o segundo “objeto a”, refere-se a quando ele ocupa a posição de analista, sustentando o semblante do objeto causa de desejo (FLESLER, 2007, p. 26). Nessa posição, o seu desejo enquanto sujeito não opera. Segundo Rabinovich (2000, p. 14-15), o psicanalista “[…] deve-se oferecer vazio para que o desejo do paciente – (…) o desejo do Outro – se realize […] através desse instrumento […] que é o analista enquanto tal”.
O lugar ocupado pelo analista, sendo um vazio, possibilita que o analisando projete sobre ele a sua posição enquanto objeto de seu Outro6. Como um paciente que se queixava de que eu não era clara, em minhas orientações, não era compreendido por suas esposas, das quais se separou, da mesma forma que não se sentiu por mim, e também me abandona. Ou outro paciente que diz ter esquecimentos e passa a esquecer o horário da análise. Ou ainda outro de sete anos que me diz que preciso urgente arrumar um namorado (para que ele seja interditado).
Lacan (1967-68/2003) diz que na entrada em análise, o analista é posicionado no lugar de suposto saber. Ele sustenta essa posição por meio de semblante, pois sabe que não o é.
No discurso do analista o saber inconsciente (S2)7 ocupa o lugar da verdade. Na direção da cura, o analista questiona as teorias e respostas prévias que o analisante traz. Como uma paciente que dizia que precisava mudar de emprego, de casa, de cidade, e eu pergunto o que precisa mudar? E ela diz que é ela. Ou outra que diz sempre achar que os namorados estão interessados em outras mulheres, mais velhas, mais inteligentes, mais experientes. Pergunto de quem é esse ideal de mulher, ela diz que é dela. Ou pôr questão nos diagnósticos e explicações com que os pacientes chegam: “isso é do TDAH, os Borderlines são assim. É mesmo? Como é isso? Assim como?”.
A intervenção do analista é no sentido de fazer o analisando se intrigar com a repetição: Como uma analisante que achava que os homens sempre a trocam por mulheres mais bonitas, diz que tem problemas com sua imagem porque sempre lhe disseram, desde a infância que não era bonita, melhorou na adolescência, qdo encorpou. Mas que não adiantava dizerem que era bonita, se antes diziam ser feia.
Pergunto porque ela, tendo recebido as duas nominações, ficou com a de feia. Com isso, o analista visa abrir para um sem sentido, desconstruindo as respostas sintomáticas dadas pelo paciente até então. Quando é possível uma nova ligação por parte do analisante, são produzidos novos arranjos significantes, modificando a construção do fantasma e a posição do sujeito diante do que o faz sofrer (sintoma).
Porém uma análise não e a produção de mais saber. O analista coloca um questionamento no saber, não coloca o seu próprio saber (“douta ignorância”). O trabalho analítico produz e aponta para a possibilidade de a perda se introduzir novamente, destampando o buraco que o sintoma tamponou. O analista, fazendo semblante de objeto causa de desejo, capta o sujeito como objeto (Rabinovich, p. 78, 2000).
Interrogar o sujeito: “você quer fazer o mestrado? Por que você se casou com ele? O que você quer com o emprego?” implica em possibilitar ao analisante fazer barra a responder à demanda do Outro (Kruel, 2007) (“meus pais investiram em mim, preciso dar um retorno”, “meus pais são rígidos, não posso decepcioná-los”, “minha mãe quer que eu seja independente financeiramente”), e se questionar porque ele deu essa resposta ao que imaginarizava que o Outro queria dele (aí aparece a posição de objeto na qual se coloca). Para depois poder vir a saber que o Outro não pediu nada, ele se pôs nessa posição.
“A meta da Psicanálise, para Lacan, é que o sujeito obtenha certa margem de liberdade em relação ao lugar que ocupou como objeto do desejo como desejo do Outro” (Rabinovich, p. 133, 2000). A queda do objeto condensador de gozo (mais-de-gozar) implica num reconhecimento da castração do Outro. Saber insabido, tamponado até então pela construção fantasmática. O objeto passa a ser então posicionado enquanto causa de desejo. O analista situasse não mais como fonte do conhecimento, mas instrumento de desvelamento da verdade (Lacan (1967-68/2003).
O analisante, por sua vez, ao ser confrontado com o silêncio do analista, em responder a sua demanda, encontra-se com o ponto de origem de seu desejo, reencontrando-se com sua própria divisão originária. No final da análise, o sujeito suposto saber é destituído, e o analista é reduzido à função do objeto a pelo analisante, destinado a ser rejeitado por ele.
Lacan diz que o final da análise não é a identificação ao analista, nem tampouco a identificação ao inconsciente (Outro), mas a identificação ao sintoma. Produzir um saber-fazer com ele (Domb, p. 18, 1997). Lacan coloca que o final de análise produz um analista. Isso vem ao encontro do que falei anteriormente, de que ele leva ao encontro com a castração no Outro, podendo assim, abrir mão da tentativa de completá-lo, ou seja, um reposicionamento diante de seu lugar de objeto.
Penso que a escolha de ocupar o lugar de analista possa ser considerado um dos caminhos do rearranjo sintomático: o de conduzir outros no percurso analítico realizado por ele próprio. É na medida em que o analista sabe o que é o desejo que ele pode suportar ocupar o lugar do objeto causa de desejo do analisante. Assim, um analista pode sustentar a função de semblante de objeto a, que é singular em cada processo de análise que conduz8. Fazer semblante implica em ocupar um lugar, sem acreditar ser aquele no qual o paciente o coloca.
Isso não significa que um analista ocupe o tempo todo essa posição, quando um analista apresenta um trabalho, como este, se põe no lugar de analisante. Assim, Domb (p. 16, 1997) nos lembra que “existe um final de análise a cada vez que um analisante senta-se para exercer sua prática de analista”.
Autora: Mônica Fujimura Leite
1 Objeto a: objeto causa de desejo: quando o objeto se ausenta, presentificação da falta. objeto mais-de-gozar: objeto do gozo, quando presentifica-se em um objeto (sintoma, carro, filho, profissão, namorado). Caso se fixe, obstrui o buraco necessário para o movimento do desejo. Importa que ele alterne entre essas duas posições, num movimento dialético de presença-ausência (FLESLER, 2007, p. 26).
2 A fundação do Inconsciente é ilustrada pelo discurso do Mestre2 . Neste, o S1 (traço unário), ao incidir sobre S2 (o saber já constituído), fazendo-o trabalhar, faz surgir $ e também uma perda, o objeto a. $, o sujeito dividido, emerge na falha, na lacuna entre um significante e outro (Dias, 2008). Citando Lacan, “no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, o saber trabalhando produz, digamos, uma entropia.” (LACAN, 1969-1970/1992, p.46).
3 O sujeito é nomeado pelo Desejo Materno (?). A partir desse significante primordial, se ordena uma cadeia. A necessidade passa pelo significante e a partir daí constitui-se a demanda. O traço unário é constituído dessas marcas que fizeram parte da história do sujeito, e têm potencial de vir a ser significantes. Porém eles têm um potencial de significação, não é fixo, há sempre possibilidade de novos arranjos. A construção do fantasma se dá na articulação dessas inscrições. (Lacan, 1961-62/2003).
5“É como idêntico ao objeto a, quer dizer, a isto que se apresenta ao sujeito como a causa do desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para (…) a psicanálise (…) ela envereda pelos rastros do desejo do saber” (p. 112).
6“O psicanalista é esperado no lugar do objeto a do paciente, na sua relação com o desejo do Outro histórico desse paciente” (Rabinovich, p. 84, 2000).
7 O S2 é um conjunto de significantes que formam uma rede essa rede forma um saber. Um saber sem sujeito. O inconsciente é uma cadeia significante que não pertence a ninguém, o sujeito só pode existir em relação ao A, que lhe é prévio.
8 Lacan (seminário 10) diz que um sujeito só se torna objeto causa de desejo depois que o Outro o perdeu (abrir mão – ou cair da posição – de ser o objeto que completa o Outro) (Rabinovich, p. 55, 77, 78, 2000)
Referência Bibliográfica
Dias, M.G.L.V. Ato Analítico e Final de Análise. Fractal: revista de psicologia, v.20, n.2, p.401- 408. jul/dez 2008. Disponível em: http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/92. Acesso em 17/11/2016.
Domb, B. O desejo do analista. In: O Desejo e Sua Interpretação. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba. v.1 . n. 2. Curitiba: APC, 1997. p. 11-20.
Flesler, A, O sujeito da estrutura: Y a d’l’Un. In: Flesler, A. A Psicanálise de Crianças e o Lugar dos Pais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 24-28.
Kruel,S,S. Final de análise. Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0102-
73952007000100013&script=sci_arttext&tlng=en. Acesso em 17/11/2016.
Lacan, J (1964). Tique e Autômaton. In: Lacan, J. O seminário livro 11. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 55-68.
Lacan, J (1961-62). Seminário 9. A Identificação. Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. 442 p.
Lacan (1967-68). Proposição de 9 de Outubro de 1967 Sobre o Psicanalista da Escola. In: Lacan, J. Novos Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 248-264
Rabinovich, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
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