O Nome Que Cada Um Faz

Lacan apresenta, neste seminário 23, o Sinthoma como um elemento a mais, além dos três sobre o qual vinha trabalhando até então, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Assim, o Sinthoma é um quarto elemento e é considerado neste seminário como necessário para um bom enlace destas três dimensões, RSI, da nossa existência. Mais um, para além dos três, que se diferencia dos demais e auxilia no enlace e limites destas três dimensões. Faço aqui uma pequena aproximação, guardadas as devidas diferenças, entre a função do Sinthoma e a função mais um no Cartel: auxiliar no enlace dos membros em sua tarefa, favorecendo os limites deste laço transferencial e o combate à cristalização das identificações e dos fenômenos de liderança.

É muito interessante como a partir desta estrutura do Cartel que lhes apresentei, cada membro se singulariza neste processo de trabalho em grupo: o recorte do tema, a autoria e o estilo de cada um aí se produz. E para mim, neste momento de trabalho, o seminário O Sinthoma é marcado e me marca exatamente por questões referentes à singularidade, ao estilo, à autoria, ao nome que cada um faz e com o qual pode fazer sua existência. Entendo este como um dos eixos que Lacan trabalha neste seminário, ele utiliza a expressão fazer-se um nome a partir de uma leitura da escrita, da obra de Joyce, apostando que seu nome como escritor teve um papel fundamental em sua vida, papel de Sinthoma. A sua escrita, que parece almejar a criação de uma nova língua, teria feito para Joyce suplência de uma nomeação paterna talvez mais insuficiente do que a desejada. Joyce, escritor, fez-se um nome.

Acredito que Lacan não pretendeu construir o caso Joyce, bem que ele gostaria, lamenta não ter analisado Joyce, que, aliás, pelo que dizem, era crítico e avesso à psicanálise. Entendo que Lacan quiz aprender e criar com Joyce e sua escrita. Entendo que Lacan se interessou pela posição inventiva de Joyce frente à língua, por seu trabalho com a transliteraração e com a homofonia, pela forma como ele introduz na escrita um sem sentido ou um para além do sentido convencional ou gramatical da língua. Acho que se interessou por estas invenções de Joyce porque elas se aproximam muito de uma série de coisas muito importantes para a nossa clínica que foram criadas por Lacan.

Assim como Joyce, Lacan fala de uma nova língua, propõe que somos habitados por e nos ocupamos na clínica de uma nova língua, que denomina lalangue, e de um discurso sem palavras, ambos distantes do sentido e da estrutura da língua que aprendemos e intencionados usar em nossas sempre falhas tentativas de comunicação. Um outro interesse que acredito que Lacan teve no trabalho de Joyce foi a maneira como ele lida com o tempo. Não há uma simples linearidade no texto de Joyce, ele rompe com a cronologia e impõe uma lógica, uma lógica de associações e derivações centradas antes no próprio texto e não em uma razão ou em memórias. E é também com um tempo lógico e não cronológico que trabalhamos, não é o passado ou a memória que nos causa dificuldades, mas sim o Real e a detenção em tempos que não podem passar. Ainda considero que a construção da hipótese de que Joyce fez-se um nome através de sua escrita, de sua obra, tem para Lacan um valor comparativo com a sua proposta de que uma psicanálise também pode produzir esta função, nos dois sentidos que a expressão comporta: nomear-se e tornar-se um nome, fazer ser a partir deste nome.

Quando o título do meu trabalho se precipitou, quando a nomeação do meu texto se impôs para mim, imediatamente lembrei de uma situação que vou lhes contar. Ministrava na faculdade uma disciplina sobre toxicomanias e convidei profissionais de uma série de instituições de tratamento de toxicômanos para falarem de seus trabalhos. Uma destas instituições enviou para a apresentação além do psicólogo, um ex-paciente que se tornou funcionário deste local. Ele foi contando sobre a avalanches de perda sem sua vida em função das drogas, com destaque para a mulher que ele muito amava e como, a partir do tratamento, lutou para reconquistá-la. Com veemência, ele afirmou que as reconquistas se deram a partir do momento em que ele pode ter um nome e proclamou com emoção: “agora eu tenho um nome, eu tenho um nome!” E vejam que interessante, ele não fez nenhuma referência ao seu nome próprio.

Muitas vezes encontramos os saberes da psicanálise explicitados de forma lógica e simples, com a simplicidade que toda lógica porta, em frases de nossos analisantes ou em cenas como esta. Este rapaz estava dizendo que pode fazer-se uma nomeação, que algo lhe permitiu fazer um nome, um nome que lhe faltava, embora ele tivera sido batizado e registrado quando nasceu. Ele pode fazer um nome e com isso fazer coisas que antes não conseguia: trabalhar, amar, ter planos e objetivos.

Fazer-se um nome, saber fazer ali com, ser artesão de si mesmo, uma língua que se cria, um inconsciente que se inventa, são expressões que Lacan usa no período de trabalho no qual o seminário 23 foi proferido e nas quais os verbos se destacam:fazer, saber fazer, criar, inventar. Verbos que falam de uma atividade que considero fantástica e fundamental para nós psicanalistas. Mais do que ser envolvido e sofrer os efeitos da linguagem, fazemos com ela e com seus efeitos ao longo de nossas vidas e na nossa clínica. Uma psicanálise não é uma filosofia, ela deve implicar movimento e transformação. Este é um ponto importante quando Lacan passa a falar de um inconsciente real e não mais simbólico. Não se trata mais de produzir sentido, de compreender, mas de fazer parada em algo que insiste através do saber fazer com seu sintoma, da produção de novos gozos menos adoentados ou sofridos.

O nosso sujeito, o sujeito da psicanálise, está subposto a uma estrutura produzida pelo atravessamento e efeitos da linguagem no humano, efeitos em três dimensões, RSI, as quais operam na existência de forma articulada. Na medida em que são tomadas em conjunto, enlaçadas, cada dimensão se articula, se refere e faz limite em relação às outras. Estar subposto é estar debaixo desta estrutura e isto implica suportá-la, o sujeito é este que suporta, que carrega os efeitos do Real, do Simbólico e do Imaginário. Embora a estrutura seja una, RSI, pois estas dimensões formam e operam em cadeia, elas não são tomadas isoladamente, isto está longe de significar estabilidade e homogeneidade. A estrutura comporta movimento e mudança e contempla, sempre, a possibilidade de uma gama diferenciada de repostas do sujeito, respostas que denominamos de clínicas: inibições, sintomas, angústia, fenômenos elementares, fenômenos psicossomáticos. Todas estas manifestações podem ser lidas na escritura da cadeia borromeana, são respostas frente aos efeitos, aos movimentos, às invasões dos limites nesta cadeia de três dimensões que é a nossa existência.

Se vocês acompanham esta lógica, fica evidente que há para todos nós a possibilidade de produção das mais variadas respostas clínicas, sintomas não são exclusividade do grupo neuroses, assim como delírios e alucinações não são privilégio das psicoses e também as transgressões não são marca registrada das perversões. Bem, sempre soubemos disso, na medida que desde Freud não nos pautamos numa clínica fenomenológica. A diferença é que estas possibilidades de respostas variadas se tornam, nesta leitura que lhes apresento, um fato de estrutura e não mais uma montagem ou traços de um tipo clínico no outro. Com a expressão “um fato de estrutura”, quero indicar que a variabilidade de respostas está comportada na lógica, na escritura da cadeia borromeana pensada como estrutura. Assim, um sujeito pode estar psicótico e não sê-lo, pode neurotizar sua vida e não precisamos dizer que ele é neurótico, pode fazer muitas perversidades para consigo e os outros e não ser perverso. E mais, ele pode fazer tudo isto ao mesmo tempo: ter uma vida excessivamente regrada e ritualizada nos moldes obsessivos, o que não o impede de ter gozos perversos de várias formas ou de acreditar ser paranóicamente perseguido ou vigiado.

A tripartição freudiana se fundamenta na lógica edípica da castração, na fundação de um sujeito a partir da castração. Nesta outra lógica proposta por Lacan,em especial a partir da cadeia borromeana, o sujeito é parlêtre, é a perda estrutural de gozo introduzida pela linguagem e seus efeitos que nos caracteriza como sujeitos efunda a estrutura. Desta forma, a lógica edípica da castração deixa de ser o fundamentopara um diagnóstico, para uma classificação de acordo com a tripartição freudiana e adquire valor de leitura a respeito dos tempos do sujeito, tempos necessários de renovação de perdas de gozo, tempos de trabalho para o sujeito transformar a perdaestrutural de sua condição de parlêtre em falta, tempos que viabilizem um arranjo suficiente entre RSI, um enlace suficiente entre amor, desejo e gozo.

Que os arranjos e enlaces sejam suficientes, não significa que sejam absolutamente eficientes, ou seja, perfeitos. A estrutura é sempre falha, o sofrimento cotidiano na clínica e fora dela nos comprova este fato de estrutura. Como já vimos,uma psicanálise pode produzir formas menos sofridas de existir, pode viabilizar a criação de um saber fazer de outro modo, e, assim, diminuir os efeitos desta estrutura sempre falha. Nesta direção e acompanhando Lacan neste Seminário 23, fazer- se um nome é uma maneira de lidar com esta estrutura sempre falha na busca de rearranjos e enlaces que permitam mais tranquilidade, menos paralisia, mais criação, menos gozo podre. O nome que cada um faz e com o qual assina a autoria da obra que é a sua existência, o nome que cada um faz pode ter valor de Sinthoma. E, para tanto, não precisamos ser Joyce, escritor. Podemos ser, por exemplo, psicanalistas. Particularmente, acho este um nome muito interessante de fazer-se.

“Dígitos diminutos revelam-se tilintantes demais para frangalhonas frascárias. Anne escracha, flo escarrapacha – pode-se embora censurá-las?”

“Rochedo com abacaxi, limão cristalizado, amanteigado escocês. Uma garota açucarbesuntada padejando conchadas de creme para um irmão leigo. Alguma vaquinha escolar. Mau para os seus bandulhos. Fabricante de pastilhas e confeitos de Sua Majestade o Rei. Deus. Salve. Nosso. Sentado em seu trono, chupando jujubas vermelhas até o branco.”

“sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ela me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a ele com os meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele para baixo de mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse eu quero Sims.”

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan
Membro da ALPL
zeilatorezan@associacaolivrepsicanalise.com.br