Angústia e Sublimação
A sublimação afirma, em seu horizonte, a angústia. A Assertiva de Harari precede sua definição para a sublimação, estabelecida pelo seguinte par de aforismos: se “a angústia é a sem (-φ)”, a “sublimação é a não sem (-φ)” (Harari, 2001, p. 277). Tais formulações sugerem uma proximidade – ainda que demarquem uma essencial diferença – entre as duas condições, já que a angústia é afirmada pela sublimação e ambas contemplam em sua definição uma articulação entre o objeto a e a falta (-φ). Ainda, ao tomarmos a palavra horizonte em sua acepção mais comum – extensão ou espaço que a vista abrange ou extensão de uma ação – podemos ler que a sublimação afirma a angústia em toda a sua extensão, em todo o seu campo ou até onde se pode ver. Isso talvez estabeleça algo a mais que uma proximidade, quiçá, uma articulação entre as duas condições e nos remete ao trabalho de Lacan de resgatar a sublimação de importantes distorções que passaram a identificá-la a uma especie de “felicidade comportamental”, adaptada ao socialmente desejável. Sublimar não salva ninguém do sofrimento e do adoecimento, sublimar não impede ou anula a angústia, ao contrário, afirma-a.
Evoco também uma questão proposta por Cruglak (2001, p. 11), nos seguintes termos: “De que depende que um sujeito, frente à irrupção do Real, frente a contingências dramáticas da vida, produza um sintoma, uma criação, uma anorexia, uma adição, uma lesão ou outra manifestação no corpo?” Em minha interpretação, além de uma possível remissão ao clássico e cotidiano trânsito clinico entre a tríade inibição, sintoma e angústia, a pergunta de Cruglak faz uma alusão à sublimação, via ato criativo. Com esta alusão, a sublimação, em sua aproximação/vinculação da angústia, pode ser associada ao campo daquela tríade, campo das possíveis respostas do sujeito frente ao enigma do desejo do Outro.
Avalio que os aforismos/definições de Harari (2001) nos encaminham para a mesma direção apontada por Cruglak (2001) no desdobramento de sua questão: onde falta a castração imaginária, onde falta a falta, o a aparece e o sujeito se objetaliza à mercê do desejo do Outro: aí temos a angústia e a produção fenomênica. Entretanto, quando a castração pode ser preservada através de algum objeto, quando esse a, objeto criado, permite ao sujeito sua liberação da condição de objetalização, temos sublimação: lugar onde a falta não falta, exatamente por conta da criação de um objeto. Observo que a questão do sujeito, ou, o sujeito em questão interrogado em sua possibilidade de sê-lo, está presente nos dois casos. Ser ou não ser, eis a questão que tomo como central no que tange à proximidade/articulação entre angústia e sublimação.
Em conferência no Brasil, Michel Plon (2006, p.21) afirmou que o Seminário X, além do trabalho sobre o conceito de objeto a, foi um momento onde se implantou a “arquitetura lacaniana” de forma integral, começando, exatamente, “por esse ponto pivô que é sua concepção de sujeito”. Um sujeito que é determinado pelo significante que advém do campo do Outro e que só pode ser pela via de não sê-lo, por não sê-lo todo e por seu desejo ser o desejo do Outro. E é exatamente nos interstícios desta trama que envolve o sujeito e seu desejo, que é o desejo do Outro, que vemos angústia se desenhar.
A angústia, antes de tudo, afeta esse sujeito, provocando, assim, uma série de sensações que o alarmam. Alarme, sinal, temos aí outro atributo, ou talvez seja melhor dizer, função, da angústia. Sinal de um estremecimento da fronteira, da distância entre desejo e gozo, sinal de uma vacilação frente ao desejo do Outro (Chemama, 1995), sinal de que o sujeito está sob a ameaça do desaparecimento do seu desejo e, portanto, sob a ameaça de seu próprio desaparecimento.
Para além dos textos freudianos que teorizam sobre a angústia, Lacan (2005 /1962-63) prioriza O Estranho (Freud, 1996/1919) por considerar que neste artigo Freud apresenta a angústia não apenas como resultante da perda, da falta, mas também como manifestação frente à falta da falta. A angústia vem com a estranheza advinda do não comparecimento da falta ali onde ela era esperada, no momento em que o objeto falha em se manifestar como faltante. Assim, a angústia sinaliza a falha, a carência do apoio da falta para a existência do sujeito do desejo, evidenciando a certeza de uma posição perante o desejo do Outro em que há risco de devoração, de sobreposição do gozo do outro sobre o desejo. A angústia, portanto, não é sem objeto e é um afeto que não engana (Lacan, 2005/1962-63).
O objeto em questão no desejo e na angústia é o mesmo, a diferença está em sua posição nestes dois casos. No desejo, o objeto está na condição de perdido, garantindo e garantido pela falta; já na angústia, ele reaparece e se duplica como representação e oferenda ao Outro mítico de gozo (Goldberg, 2007). O desejo se sustenta na estrutura do fantasma e Lacan (2005/1962-63) afirma que nesta mesma estrutura se estabelece a angústia. perante o enigma do desejo do Outro, a angústia surge se o Outro não se apresentar como faltante para que eu possa ser a, causa do desejo para ele. Todos estes elementos situam a angústia na ordem da estrutura, intimamente associada ao estatuto do sujeito, um fenômeno existencial, não sendo redutível a uma manifestação psicopatológica a ser simplesmente suprimida.
Também a sublimação está associada à ordem da estrutura e, como já enunciado, à questão do sujeito. Lacan (1997/1959-60) enfatiza a íntima articulação da sublimação com o campo pulsional. A sublimação se apresenta como a essência do funcionamento pulsional, pois é no circuito como desvio que se dá a satisfação pulsiona, e assim também o é com a sublimação que, por definição, se dá pelo desvio do alvo. A sublimação está no centro da economia libidinal, no âmago do funcionamento pulsional e, portanto, da constituição do sujeito.
Definida como um movimento capaz de elevar o objeto ao estatuto da CoisaI (Lacan, 1997/1959-60), a sublimação está vinculada à busca pela Coisa, associada aos primórdios da organização subjetiva onde as afirmações primeiras do que é bom se confirmam com a expulsão e negação do ruim. Com o vínculo ao vazio da Coisa, a sublimação é anterior a todo recalque e independente dos ditames do eu e da vontade, demonstrando a não assimilação deste conceito a ideias adaptativos e normativos, ou ao desejável socialmente. Além do mais, nesse distanciamento do eu é possível vislumbrar a presença do sujeito, marcado pela falta e sob a égide do inconsciente, avesso ao funcionamento da consciência e da razão. Ao mesmo tempo, a articulação da sublimação à pulsão, sua localização nos primórdios da organização e estruturação do psiquismo e, enfim, sua ligação com a Coisa, marcada pelo que está de fora do campo representacional, vinculam-na ao Real e à repetição.
Sabemos ser no momento de corte, da separação e queda do lugar de objeto que a identificação alienante é interrompida, viabilizando a inscrição pulsional, instaurando a falta e permitindo o desejo; em outras palavras, com o corte, tempo da separação, vemos surgir o sujeito. Lacan (2008 [1966-67]) articula o conceito de repetição ao corte, à separação e queda do lugar de objeto: respondendo ao mecanismo estruturante de busca pelo reencontro do objeto perdido, a repetição repete um fracasso que atesta, reafirma o impossível do gozo da Coisa. Então, na instalação da pulsão também se inaugura a repetição, ambas atreladas à constituição do psiquismo e do sujeito e à infindável busca de reencontro do objeto miticamente perdido, do reencontro da Coisa.
Me atenho também ao fato de Lacan (2008/1966-67), em A Lógica do Fantasma, afirmar, de forma direta e clara, que a sublimação tem como sua estrutura fundamental a repetição – aquela que se inaugura com o corte e a constituição do Real pela exclusão de um resto pulsional não simbolizável. Para chegar nesta formulação Lacan (2008/1966-67, p. 209) parte da proposta de um vínculo da repetição com a passagem ao ato, que considera um “modo privilegiado e exemplar de instauração do sujeito”, confirmando a implicação de um sujeito nisso que em psicanálise denomina-se ato.
A definição de ato dada por Lacan (2008 [1966-67]) é composta pelos seguintes termos: o ato é significante, significante que se repete, mesmo que apenas em ações; o ato é a instauração do sujeito, através do ato o sujeito surge como efeito do corte, embora ele não se reconheça aí como tal. Estas formulações possibilitam a apreensão do que a passagem ao ato e o acting-out – duas modalidades de ato – comportam a repetição, clarificando o vínculo proposto entre esses dois conceitos de ato e repetição. O que está em questão é a repetição diferencial da ordem do Real, que impulsiona a insistência dos significantes na cadeia, fruto do corte, da separação que também permite o surgimento do sujeito. Afinal, a passagem ao ato e o acting-out fazem corte, ou melhor, reeditam o corte fundador da repetição, uma vez que põem em cena o que escapou à simbolização e reafirmam a existência de um sujeito que, frente a angústia, rechaça a alienação ao Outro e busca presentificar a falta.
Por sua vez, o ato criativo presentifica a marca fundamental do sujeito, marca traduzida como o vazio, onde o Real pode ganhar forma na sublimação. E ainda, a sublimação libera o sujeito do aprisionamento neurótico do lugar de falo para o Outro: a obra, fruto do ato criativo, exerce a função de falo e permite assim a saída do lugar de objeto e o conseqüente advento do sujeito na sublimação. Situada na ordem de um gozo suplementar, a sublimação transcende o gozo fálico e possibilita o desprendimento do sujeito do lugar de falo para o Outro. Para tanto, é necessária a possibilidade de prescindir do significante do Nome do Pai para que um novo significante possa advir em seu lugar, dando vez e voz ao ato criativo. Obviamente, não há como prescindir de algo que não se tem, e para poder transcender este significante, para poder ir além desde Nome na produção de novos significantes, é preciso saber, ao menos em alguma medida, que o ato de criação não o anulará, que prescindir desde Nome não significa destruí-lo. Ao contrário, é operar fora de seus domínios, mas, em virtude de seus efeitos e corroborando a sua função de assunção subjetiva.
A sublimação é um caminho com o qual o sujeito pode dispor do vazio, ou seja, presentificar o vazio que o constitui através do ato criativo, talvez num desvio da inibição, do sintoma, da angústia, e, portanto, do acting-out e da passagem do ato. Desviar de algo, implica reconhecê-lo, afirmando a sua existência: a sublimação afirma, em seu horizonte, a angústia. Retomo o ponto onde vislumbrei a sublimação associada ao campo das respostas frente o desejo do Outro e remeto-me ao grafo do desejo, lembando que a angústia está localizada no topo, logo abaixo da fantasia, ou seja, é uma das últimas respostas protetoras frente ao desejo do Outro. Então, arrisco hipotetizar a presença da sublimação no grafo, próxima à angústia, acima do sintoma e da inibição, uma vez que ela implica em movimento, em ato de criação, de forma independente do recalque e permite ao sujeito distanciar-se de sua identificação fálica na medida em que a obra ocupa o lugar do que se era para o Outro (Pommier, 1990) assim, quando um objeto pode elevar-se à Coisa, o sujeito se liberta, mesmo que temporariamente, das vias de oferenda de seu corpo ao desejo do Outro.
Ainda, se pensarmos no nó borromeu, a angústia se localiza na zona de invasão do Real sobre o Imaginário, e a sublimação é, exatamente, a possibilidade de imaginarizar o Real. De poder fazer com o Real, elevando um objeto à dignidade da Coisa através do suporte do Imaginário. E não é também uma questão de dignidade o que entra em cena com a angústia? Não temos aí um sujeito, afetado, alarmado, lutando para manter a sua dignidade?
Autora: Zeila Cristina Facci Torezan
Referência Bibliográfica
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