“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”: REFLEXÕES SOBRE A ANGÚSTIA E OS ATENDIMENTOS ON LINE NOS TEMPOS DE PANDEMIA
“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”:
REFLEXÕES SOBRE A ANGÚSTIA E
OS ATENDIMENTOS ON LINE NOS TEMPOS DE PANDEMIA
Mônica Fujimura Leite
Diante da imposição do isolamento social, precisamos fechar as portas de nossas clínicas e passar a atender on line. Neste momento, era a única forma de dar seguimento ao trabalho, sustentando uma posição e um anteparo frente aos desdobramentos que a situação impunha.
Frente ao desamparo vivenciado, o tema veio muito a calhar com o seminário que eu vinha estudando com colegas da ALPL, na modalidade de cartel. Assim, me propus a pensar se os fenômenos experienciados poderiam ser articulados ao conceito da angústia, conforme Lacan o propõe, e como se daria o tratamento disso numa análise on line. Gostaria de agradecer as interlocuções realizadas, com minhas colegas de cartel, bem como com os demais membros, nos fóruns, reuniões de eixo e seminários.
A pandemia trouxe uma condição de sofrimento. Fomos afetados nos três pilares de nossa existência e que Freud (1929/1996) aponta como fontes de sofrimento: nosso corpo, o outro e a natureza. Ouvimos relatos das perdas (da liberdade, dos objetos de gozo, do trabalho, da morte, da saudade); de o contato com o outro, tão primordial ao humano, ser a fonte do contágio; de o vírus ser uma resposta da natureza frente às intempéries humanas ao planeta.
Porém, dizer que este sofrimento afeta a todos da mesma forma não é verdadeiro. Colette Soler, em uma live, diz que o sofrimento, para além da circunstância que o produz e desencadeia, é relacionado ao inconsciente de cada um, e participa do gozo inerente ao sintoma.
De que forma isso se dá? Retornando à letra de Freud, no texto supracitado, ele diz que, quando somos atingidos em uma dessas direções, nos deparamos com o nosso desamparo primordial, contra o qual tentamos fazer frente através da civilização. Freud localiza esse desamparo à condição própria do humano que, diante de sua fragilidade e despreparo constituintes, é totalmente dependente de um outro humano para sobreviver. Isso é traumático. Diante da falta de resposta instintual do bebê, o adulto codifica as vivências infantis por meio da linguagem, armando o circuito pulsional, tirando o infans da condição de ser vivente e ascendendo-lhe à condição humana. Ter sua existência atrelada ao desejo de um outro traz ao infante o temor de perdê-lo, ficando para ele a interpretação de que o outro é a fonte de seu sofrimento. Dentro deste circuito, onde podemos situar a angústia?
Freud, em “O Estranho” traz duas ideias, a de que a angústia seria um sinal de uma ameaça ao eu, ameaça da castração (entendendo castração como perda), sendo consequência, portanto do recalque; e, posteriormente, que a angústia é que produziria o recalque, que seria então uma defesa contra a angústia. Lacan, no seminário 10 (p. 153) retoma o dito freudiano, questionando-o, de como a angústia[i] poderia ser defesa, e ao mesmo tempo, algo contra o qual o eu se defenderia? Ele traz então a ideia de que a “defesa não é contra a angústia, mas contra aquilo de que a angústia é sinal” (p. 153). Não se trata de defesa contra a angústia, mas de uma certa falta. Falta de que?
De acordo com Lacan (seminário 10), a angústia aparece quando a falta do Outro falta. Partindo exatamente de onde Freud nos deixou, em termos lacanianos, para existir, o humano precisa ter sua existência reconhecida por outro humano, ou seja, se engajar no desejo do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro” (p. 31). Na medida em que o Outro falta, e não sabe o que lhe falta, o sujeito é implicado, a partir de sua própria falta, a ocupar o lugar de objeto que supostamente completaria ao Outro, e consequentemente a ele mesmo (p. 32-33).
Lacan nos lembra que o Outro é o lugar do significante, ou seja, retomando o estádio do espelho, a criança, ao reconhecer, jubilatoriamente, a própria imagem no espelho, volta-se para o adulto que a segura, em busca da confirmação “tu és” (p. 41)[ii]. Ele diz, porém, que nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular, resgatando o conceito de falo, enquanto uma lacuna que fica na imagem, ou seja, uma falta.
É isso que possibilita o desejo: na medida em que algo escapa da significação do Outro, o sujeito fica impedido de identificar o objeto que completaria a falta. Assim, constitui-se a cena fantasmática, que implica no sujeito separado do objeto de desejo, na esperança de alcançá-lo. Nas palavras de Lacan: “o a[iii], suporte do desejo na fantasia, não é visível naquilo que constitui para o homem a imagem de seu desejo” (p. 51). Isso que resiste à significantização é o que possibilita ao sujeito ser desejante.
Então, respondendo à pergunta, a angústia surge quando algo aparece no lugar em que deveria estar preservado o lugar da falta. (p. 51)[iv]. Ou seja, o sujeito se vê na iminência de ver-se como objeto que completa o Outro, colocando a sua castração a serviço do que falta ao Outro (p. 56).
Observem que Lacan diverge radicalmente de Freud neste ponto, uma vez que para ele, conforme foi falado (e que ele retoma em Inibição, Sintoma e Angústia), a angústia seria uma reação frente à perda do objeto. Para Lacan, o sinal que a angústia introduz é frente ao desejo do Outro, que lhe dirige uma demanda que o anula, questionando o sujeito em sua própria perda, seu próprio desejo, na qual ele fica aprisionado (p. 169).
Além desta questão da demanda, Lacan situa a angústia frente a outros dois pilares: o gozo do Outro e o desejo do analista. Com relação ao gozo do Outro, Lacan refere que a angústia surge quando o objeto a (privado e incomunicável) torna-se um objeto intercambiável (comum, socializado, situável e reconhecível) (p. 100 e 103). Os objetos intercambiáveis são os objetos da pulsão, objetos parciais, que servem para preencher uma falta, sendo gozado pelo Outro.
Para tratar disso, Lacan traz o exemplo de estarmos diante de um louva-deus gigante, travestidos de algo que nós próprios desconhecemos. Nesta situação nossa angústia refere-se a não sabermos que objeto somos diante do desejo do Outro, correndo o risco de sermos um objeto apetecente aos olhos dele, podendo então ser devorados. Ele traz, retomando o grafo do desejo, na relação do sujeito com o significante (do Outro), a pergunta que se coloca “che voi?”, desdobrando em “o que ele quer comigo?” e “como me quer ele?” (p. 14).
Fazendo referência à situação vivenciada por todos nós neste momento, e que nos tem posto em angústia, podemos desdobrar tais perguntas: o que esse vírus quer comigo? Serei do grupo de risco? Vou morrer? O que acontecerá como meu emprego? Como pagarei minhas contas? Poderei trabalhar? O que faço com meus filhos? Quero este marido? No fórum da Fernanda, em que ela também trata dos atendimentos on line nos tempos de pandemia, Mônica Silva pergunta: frente ao encontro com o Real, o sujeito responde como objeto? Lacan diz que a angústia é sinal do real (p. 178). O real, para Lacan, seria o que nos coloca diante da castração, ou seja, da falta. Penso que seja neste sentido que Colette Soler traz que, diante de um fenômeno mundial (pan), cada sujeito responde individualmente. Conforme vimos com Lacan, diante da falta no Outro, o sujeito responde com a própria falta.
Diante disso, o que faz uma psicanálise? Fernanda traz em seu fórum que, por meio das intervenções, o analista visa esvaziar este lugar de objetos intercambiáveis, até que possa surgir o lugar da falta como não tamponável. Assim, o sujeito pode ocupar um outro lugar, diferente do de objeto intercambiável.
Assim, retomando, a angústia surge da relação do sujeito com o desejo do Outro, diante do qual ele responde com o próprio desejo, a partir de uma resposta sintomática. Lacan trata o sintoma, neste seminário, enquanto o que situa ao objeto a enquanto causa do desejo do sujeito (p. 304-305). Uma psicanálise possibilita então, de início, que o sujeito perceba o funcionamento de seu sintoma, ou seja, que há uma causa nele (p. 306).
No seminário 10, Lacan diz que o caminho de uma análise passa pelo a, e que este é o objeto presente na transferência (p. 307). Assim, o sujeito se oferece nesse lugar de a ao analista (p. 61), pedindo-lhe que demande dele (p. 62). Lacan situa a transferência, neste seminário, que é a partir desta falta que o paciente ama, e repete isso com o analista (p. 122) (amor de transferência). Sabemos, desde Freud, que aceitamos a oferta, porém, não respondemos a partir dela. Desta forma, podemos levar o sujeito ao encontro com a interpretação da castração. Ao se deparar com a falta no Outro (analista), o sujeito é convocado a “dar o troco, através de um signo, o de sua própria castração” (p. 56)[v]. Assim, ao ofertar esse vazio, cuja presença serve de anteparo ao enganchamento das relações primordiais do paciente, o analista possibilita ao analisando perceber-se nessas relações que o configuraram enquanto sujeito na vida, e que posição tomou diante delas.
Isso possibilita a passagem da angústia ao desejo. Lacan diz que a angústia é intermediária entre o gozo e o desejo (p. 193). Na experiência analítica o sujeito retorna à função da falta na estrutura original (p. 151), marcando a falta como irredutível (p. 195), e passa da ameaça de castração para a angústia de castração (p. 195). Assim, deixa de ver a falta como uma ameaça ou um defeito, admitindo-a como parte de si, desanodando-se da posição sintomática na qual se encontra, possibilitando a queda de a, e ascendendo ao desejo.
Segundo Soler, isso se dá não tanto pela palavra do analista, mas é possível porque o analista encarna, no pano de fundo de seu silêncio, o objeto causa, a partir do qual o inconsciente se diz. E na análise on line, como o objeto se faz carne?
Lembremos que Lacan, no seminário 11, diz que o inconsciente se produz na análise e […] “não pode ser separado da presença do analista”. Diante disso, é importante compreender o que Lacan chama de presença do analista. Na Nota Italiana Lacan (1973) diz: “Só existe analista se o desejo lhe advir”. Podemos entender então que o analista ocupa determinada posição, a partir de um desejo: desejo do analista (p. 307). Chegamos aqui ao terceiro elemento trazido anteriormente por Lacan. O analista ocupa a posição de objeto causa de desejo.
Bom, um início de resposta seria então a sustentação do desejo do analista, onde ele ocupa uma função. Além disso, a constituição do inconsciente se dá em transferência, marcando esta presença nos três registros – real, simbólico e imaginário. Existem as palavras e as articulações significantes, existe a cena que se monta, existem os afetos e objetos pulsionais que circulam entre analista e analisante. Essa é a condição para que a análise aconteça.
Comecemos pelo simbólico: em “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”, Lacan diz que o poder da psicanálise é o poder da palavra. Do lado do analistante, permanece nosso convite para que ele fale, inaugurando, com a associação livre. Do lado do analista, entramos com as pontuações, equivocidades, escanções, cortes. Mas a fala também comporta a dimensão do real, recupera-se um gozo ao falar.
No seminário 10 Lacan diz que os significantes vocalizados nos colocam diante do objeto a (p. 273). Assim, a voz entra como algo que está entre o sujeito e o Outro, sendo vista como estranha a ele, e instaurando um vazio. O sujeito incorpora os significantes do Outro (p. 301).
Numa situação de interação virtual, os especialistas dizem que a qualidade do som é mais importante que a imagem. Penso na radicalidade disso quando se refere a uma psicanálise, em que a fala não tem função de comunicação. Lacan diz que “o efeito do significante é fazer surgir no sujeito a dimensão do significado” (p. 311), e isso é particular para cada um. As chamadas “falhas de comunicação” decorrem de os objetos do mundo poderem entrar como causa para o sujeito (p. 315)[vi].
A fala está para além do enunciado, é um dos objetos da pulsão. Assim, o dizer implica em uma posição erógena e tem efeitos sobre o corpo. Implica em uma enunciação e um endereçamento, veicula desejo. Na instauração do inconsciente, a linguagem é incorporada pela voz. Como fica isso com a mediação da tela? Aurélio Souza, numa live do Espaço Moebius, diz que numa análise on line, o elemento intermediário que serve de contato entre o analista e o analisante modifica as condições de fala de ambos, modificando o que cada um pode ouvir, e a forma como é escutado o retorno que fazemos da fala do paciente para ele próprio.
Como trabalhar as escanções, as interrupções, as respirações e os suspiros, quando estamos assujeitados à conexão do provedor da internet? Como garantir uma escuta? Ou um silêncio? Como intervir num mal-entendido sem saber se foi uma falha técnica ou do discurso do paciente? Como saber se ele não escutou por resistência ou por “rede desistência”?
Sobre o silêncio, encontrei em Hernandez (2004) uma citação de Lacan, no seminário A lógica do fantasma que diz existirem duas formas de silêncio. Taceo seria o da palavra não-dita, do calar, do silenciar ou ser silenciado. De outra parte, sileo seria um silêncio fundante, estruturante, do buraco da significação. Quando há palavras para se dizer, mas não são ditas, cala-se; por outro lado, quando faltam palavras para dizer o que se deseja, silencia-se. Pela tela não é possível saber se o silêncio é um ou o outro.
Cristhian Dunker, em seu canal do youtube, diz que numa análise on line a resistência começa a tomar força, sendo mais fácil desencontrar horários, desligar a tela… Eu já vivi atrasos, outros compromissos, esquecimentos. Visitas familiares que chegam, interrupções de setting.
Pelo viés imaginário, em sua clínica presencial, o analista oferece um setting, e isso implica, para além da sustentação de uma função, também a oferta e sustentação de um lugar, um horário, do sigilo, do divã, a disposição dos corpos no espaço, a interrupção do olhar, a interrupção da sessão. Diante destas questões, encontro interlocução novamente com Aurélio Souza, que diz que há efeitos transferenciais numa análise on line, na medida em que não garante a privacidade, e uma exacerbação do imaginário.
Numa análise on line, quem chama? Quem fica na espera? Como lidar com as falhas ou perdas de conexão? Repomos a sessão? De quem é o problema técnico? De quem é a falta? A sua internet não funciona, ou é a minha? Quem se responsabiliza?
São questões, que não sei se têm uma resposta definitiva. Sei que tenho praticado o trabalho clínico com a psicanálise on line, e que tem sido possível a continuidade do tratamento das questões trazidas pelos pacientes, além de situações inusitadas e surpreendentes. Mas esses desdobramentos têm feito ruído. Me vejo muito mais cansada e tendendo a concordar com os psicanalistas que dizem ser possível, contanto que se intercalem encontros presenciais.
REFERÊNCIAS
Freud, “O Estranho”
Freud, S. O Mal Estar na Civilização. (1929/1996)
Freud, Inibição, Sintoma e Angústia
Lacan, J. Nota Italiana (1973) p. 311-315. In: ________Outros Escritos, RJ, Jorge Zahar Ed, 2003, trad. Vera Ribeiro.
LACAN, J. (1962-63).O seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1964).O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
“A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”
LACAN, Le Coq-Héron, 1974, nº 46/47, p. 3-8 – Declaration à France Culture
Lacan, Jacques (2003b). Nota italiana. InOutros escritos. Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original transmitido em 1973)
Hernandez, Juliana. (2004). O duplo estatuto do silêncio. Psicologia USP, 15(1-2), 129-147. Disponível em https://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642004000100016 Acesso em 19 maio 2018.
complementar
Lacan, Jacques (2008a). Lição XVI. Seminário 14: A lógica do fantasma. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife: publicação para circulação interna. (Trabalho original transmitido em 1967).
[i] Para Lacan, a angústia não é uma emoção, mas um afeto. Isso implica em que ela não é passível de recalque, fica à deriva, o que é recalcado são os significantes que o amarram (p. 23)
[ii] Lacan reforça que as coisas do mundo se colocam em cena a partir das leis do significante (p. 42-43).
[iii] O objeto a, Lacan o situa originalmente como suporte do desejo, ou seja, como causador dele (p. 113 e 115).
[iv] Lacan diz que quando o lugar do -ⱷ é preenchido, surge “a angústia de castração, em sua relação com o Outro” (p. 55).
[v] “é na medida em que se esgotam até o fim, até o fundo da tigela, todas as formas de demanda, até a demanda zero, que vemos aparecer no fundo a relação de castração” (p. 63).
[vi] Torneira de Piaget, em que a criança parecia compreender a explicação do funcionamento, proposta pelo adulto, mas quando ia ensinar outra criança, algo se perdia e ela não conseguia explicar.