Efeitos da Medicalização na Constituição Subjetiva da Crianças
O termo Medicalização diz respeito ao reducionismo biológico do sofrimento psíquico. Nessa prática ocorre uma valorização desproporcional de explicações neurológicas e genéticas e o psiquismo do humano é reduzido a sua estrutura biológica (MOYSÉS & COLLARES, 1994).
A partir da Psicanálise, podemos considerar essa redução como uma exclusão do campo da sexualidade na estruturação do sujeito humano. Atualmente, a denominação que se atribui a indivíduos em sofrimento psíquico “indivíduo com…” separa o sujeito de seu sofrer, deixando de fora a relação que ele estabeleceu com seu sintoma (ESPERANZA, 2011) (desconsiderando o fato de que ele o produziu). Assim, segundo a autora, fica a seguinte lógica:
…o transtorno substitui o sintoma, o organismo substitui o corpo, o indivíduo
substitui o sujeito e o inconsciente desaparece em favor de comportamentos e
condutas a modificar (p. 58).
que disso decorre é que as mais variadas manifestações de mal-estar e de comportamentos socialmente inadequados ou ditos “disfuncionais” são interpretados enquanto signos patológicos. Nesse sentido, Caraffa (2013) afirma que, se ao longo da vida o humano passa por desconfortos psíquicos ou físicos, devido a circunstâncias cotidianas, estes deixam der ser encarados enquanto consequência natural da experiência humana e passam a ser considerados sintomas de doenças, tais como transtornos de sono, depressões, disfunções sexuais e distúrbios de ansiedade.
Abandona-se uma busca de um sentido contextual e uma causa para a manifestação comportamental, ou seja, as questões psíquicas deixam de ter um caráter de sintoma, no sentido “sinto-mal” (QUINET, 1991), para serem explicados como uma disfunção neuroquímica.
Segundo Lopes (2013), essa idéia corresponde à lógica de que seria possível a eliminação do desconforto e da insatisfação, como se ao suprir o que falta em determinado momento da vida, encontraria-se a felicidade plena.
O tratamento dado a isso seria normativamente a administração de medicamentos (psicofármacos), as quais, a partir de um reajuste das disfunções cerebrais, hormonais ou neuroquímicas, teriam como resultado uma normalização dos comportamentos inadequados. Assim, questões sociais, econômicas, políticas e culturais são desconsideradas (ROCHA E FERRAZZA, 2011) e o sujeito é desimplicado de seu sofrimento.
Os que criticam essa visão defendem a idéia de que não é possível reduzir a complexidade do psiquismo humano a uma única determinação e explicação para as agruras que o acometem. A Psicanálise possibilita uma visão crítica dessa ideia, considerando esta questão, por um lado, de negação do mal estar estrutural no qual o humano se encontra, o qual decorre de três fatores irreconciliáveis: seu próprio corpo, a natureza e o outro (FREUD, 1930/2006) e por outro, uma busca ilusória de “completude”, inerente à condição humana, por seu processo de constituição psíquica (Lacan, 1988).
Porém, o que tem preponderado é essa visão medicalizante, que a qual tem ganhado força em todas camadas e instâncias da sociedade atual.
A problemática sobre a qual nos deparamos aqui, é a de que essa visão tem atravessado também a área da infância, de onde se denota uma proliferação de diagnósticos psicopatológicos para comportamentos que atrapalham a ordem do dia, mas que em outras épocas e contextos recebiam outra interpretação.
As explicações medicalizantes reduzem as multideterminações dos transtornos da infância a um fator biológico e o tratamento tem como base a administração de psicofármacos (ROCHA e FERRAZZA, 2011; Untoiglich, 2006). No tempo da infância essa prática possui efeitos que não podem ser desconsiderados, devido aos efeitos hiatrogênicos que decorrem dele, em decorrência da especificidade que desse tempo. Tomaremos como situação exemplar o “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH), por ser o diagnóstico que mais tem atingido crianças e adolescentes. A esse respeito, ROCHA E FERRAZZA (2011) afirmam:
O principal tratamento determinado àqueles que são diagnosticados com TDAH é a
prescrição de um medicamento psicoestimulante, o cloridrato de metilfenidato, que
apresenta, entre outros, o nome comercial de “Ritalina” ou “Concerta”. Apesar das
diversas pesquisas publicadas na atualidade tentando alertar pais e professores
sobre os prejuízos na vida daqueles que apresentam sintomas do TDAH (ROHDE
et. al., 2000; GOMES et. al., 2007), há poucos trabalhos que advertem sobre os
efeitos colaterais do uso do metilfenidato. Segundo Barros (2008), dentre os
diversos efeitos adversos, destacam-se insônia, taquicardia, dores abdominais,
anorexia, perda de peso.
Além destes, Cordioli (apud Mariotto e Gizzi, 2012) e Moyses e Collares (2013) acrescentam efeitos ainda mais graves, tais como psicoses, alucinações, depressão, ansiedade, irritabilidade, suicídio, convulsões, insônia, confusão mental, esterotipias, compulsões, diarréia, alterações nas funções hepáticas, retardo no crescimento, alteração nas funções sexuais, tontura, perda de cabelo, enurese.
O Metilfenidato é um estimulante do SNC (anfetamina), que aumenta a atenção e a produtividade. Aumenta os níveis de dopamina no cérebro, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Esse é o mesmo princípio ativo da cocaína. Como consequência desse aumento artificial o cérebro se dessensibiliza quanto a situações cotidianas que provocariam prazer, o que pode ocasionar na adicção ao medicamento.Assim, ao ser retirada, pode ocasionar reações como insônia, depressão, exaustão, hiperatividade, irritabilidade e piora dos sintomas iniciais. Além disso, estudos apontam para o o risco de posteriormente o indivíduo assumir comportamento de adicção a outros tipos de droga.
Uma outra questão que os autores colocam é que além dos efeitos colaterais orgânicos, existem outros, de ordem psíquica, que dizem respeito à estigmatização daqueles que levam o diagnóstico e fazem uso da medicação, que normalmente se estende por muito tempo. O que os pesquisadores dessa abordagem, e eu, a partir de minha prática, questionamos, são os efeitos hiatrogênicos que esta visão pode ocasionar,numa problemática que pretendia solucionar, ocasionando maiores danos, algumas vezes piores que o de início. Isso decorre de várias questões.
A primeira diz respeito ao uso que a família faz de tal lógica medicalizante. Não é raro ouvirmos relatos de pais dizendo administrarem a medicação apenas nos períodos escolares (ou seja, nos fins de semana e férias as crianças não tomam o remédio).
Segundo eles, a explicação é a de que a escola é que se queixa do comportamento da criança, ou que ele necessita apenas na questão da aprendizagem. Ou, relatos de professoras dizendo ter sido delegada à escola a função de administrar a medicação à criança. Pode-se questionar, a partir disso, por um lado, como fica o organismo de uma criança com tamanho desbalanço químico, e por outro, por que vias passa esse diagnóstico dentro da fantasmática familiar e social. De que forma essa criança apresenta a sintomatologia que aparece de diversas formas para cada ator social que dela se ocupa. Se comporta melhor em casa? A angústia é da escola, que está vendo uma inadequação onde não existe? Existe uma resistência da família em aceitar a problemática? E a pergunta mais importante: que discurso não está sendo escutado? De que mensagem essa criança está sendo portadora que ocasiona um curto-circuito nacomunicação entre família, escola, médico e criança?
Além disso, Gisela Untoiglich (2006), pesquisadora argentina, que trabalha há anos pesquisando tais questões, fez um levantamento em diversos países (Argentina, Colômbia, EUA, México), em sua dissertação, e encontrou algo que também no Brasil nossa prática tem corroborado. Constata que em muitos casos uma criança diagnosticada com TDAH apresenta outros tipos de transtornos do desenvolvimento, como psicoses, depressões e históricos de violência (física, psicológica e sexual).
Em minha prática, bem como na interlocução com equipes de trabalho de São Paulo, Londrina e Porto Alegre, encontramos em nossas clínicas crianças com dificuldades na apropriação do corpo, na constituição do eu. Além disso, temos encontrado crianças em carência de garantia de direitos (sem pai, sem pensão, acesso à saúde, sem condições sociais), com falta de limites, na contenção da angústia, com questões existenciais, acerca de sua origem e filiação, problemas de transmissão, não ditos ou mentiras, mães sem disponibilidade psíquica para realizar os cuidados que uma criança necessita, crianças com déficits cognitivos, processos de luto, histórias familiares trágicas (adoções, migrações, perdas).
Moyses e Collares (2013) referem ainda terem encontrado em suas pesquisas muitos casos de crianças e adolescentes em situação de abrigamento, por perda de pátrio poder (ou seja, se estão lá é porque foram anteriormente submetidas a situações extremas de violência) serem medicadas com essa droga. Nesses casos, mais uma vez se repete o ciclo da violência em suas trajetórias de vida, sendo a expressão de seu sofrimento rotulada enquanto um transtorno psíquico e seu pedido de ajuda silenciado. Vejamos o risco decorrente disso, segundo as autoras:
(…) em muitos casos (a sintomatologia do TDAH) oculta uma
sintomatologia grave, a qual eclode a posteriori ou encobre deterioração que
se aprofundam ao longo da vida. Em outros casos, exerce uma pseudo
regulação do comportamento, deixando, por sua vez, a criança libera a
posterior impulsividade na adolescência, em razão de que não exerce
modificações de fundo sobre as motivações que poderiam regulá-las, dado
que (…) tendem a silenciar os sintomas, sem perguntar-se o que é que os
determina, nem em que contexto se dão.
Um outro tipo de relato da família muito comum é com relação a para quem é o remédio, que visa ao aplacamento dos sintomas de TDAH na criança. Relatam que o acalmar do comportamento do filho em casa, ou a diminuição da queixa escolar representam um alívio para eles. A questão que se coloca aí não é desmerecer a necessidade de diminuição de tensão e frustração que esses pais buscam, mas o quanto esse tipo de prática vai a favor de tamponar o reais motivos pelos quais essa criança fez esse sintoma. Isso porque o sintoma na infância é um sinal que implica diretamente a fantasmática parental.
Essa questão tão cara aos pais tem um outro viés, que implica no que resvala na criança um diagnóstico precoce, colocando em risco a constituição de sua subjetividade e sua perspectiva de futuro.
Isso porque o Estadio do Espelho lacaniano (1998) nos diz que a subjetividade do humano nasce a partir do desejo do outro. Vejamos o quanto essas questões estão imbricadas, de modo que torna-se impossível separar a sintomatologia na infância do lugar que ela ocupa na família e o quando isso está atrelado a sua constituição enquanto um sujeito desejante.
Segundo a teoria freudiana, o nascimento de um filho implica para os pais na possibilidade de uma restituição narcísica, uma aposta no futuro do que não foi possível realizar no passado, projetando nesse ser que ainda nada é, toda uma possibilidade compensatória de drible da castração, das frustrações e limitações que os pais, enquanto humanos, se depararam ao longo da vida. Por outro lado, estar colocado antecipadamente nesse lugar, na fantasmática parental, permite ao bebê não somente sua sobrevivência biológica, mas também sua inserção no mundo humano, a partir de seu enlace a esse desejo parental. Vorcaro (2011) coloca que:
… a inscrição do neonato humano na cultura, antes mesmo que ele
compareça como presença concreta, sua antecipação funcional e seu
consequente enlaçamento numa linhagem traçam a condição de qualquer
criança (p. 226).
O bebê humano, diferente dos animais, que possuem um modo único e determinado de realizar as funções para sua sobrevivência, nasce biologicamente imaturo, incapaz de dar conta de cuidar de si e de entender sozinho o que se passa a sua volta e em seu próprio corpo. A carência de instintos, ocasiona no bebê humano a vivência de uma corpo despedaçado. Necessita para sobreviver, de ser cuidado por alguém que realize a Função Materna, (que pode ser a mãe biológica ou alguém que assuma a função), a qual não se reduz a um cuidado no nível do biológico. Ao puro grito do bebê, decorrente de um incômodo gerado por um excesso de excitação (fome, dor de barriga, o que a criança não sabe de que se trata), é necessário que ela tome – o como um apelo, respondendo não apenas com a eliminação dessa excitação, mas pondo palavras nisso que era do biológico. Dessa forma, a partir do encontro com o outro, começa a se inscrever na criança um outro registro, que produz uma marca a partir de uma experiência de satisfação (prazer do órgão, vivida no corpo). A partir dessa marcas, erógenas, ela sai do campo da pura necessidade biológica, e da próxima vez em que chorar, será na busca dessa experiência.
Juntamente com as experiências de satisfação, ficam para a criança registros de sons, cheiro, sensações, pedaços de palavras que vão constituindos-e em uma rede de imagens (carinho, voz da mãe, embalo). Lacan (1998) usa a situação exemplar da criança em frente a sua imagem no espelho: num primeiro momento, a criança reage como se a imagem refletida fosse uma outra criança (vai procurar atrás do espelho). Em seguida, deixa de tratar a imagem como um objeto real, percebe tratar – se de uma imagem e na terceira etapa, ela se reconhece essa imagem como sendo sua. A criança se identifica com essa imagem, e esta é assegurada pela mãe, que lhe diz que aquela ali é ela. A criança se vê então a partir do olhar da mãe, e nisso se implica o desejo dessa mãe.
Segundo Lacan (1998), num primeiro momento, o bebê não diferencia ele mesmo da mãe, vivendo apenas uma regularidade de satisfação e ausência de satisfação. Com a quebra de tal regularidade, a mãe emerge como algo real, separando-se e constituindo-se para a criança como Outro (A), portador de todos os objetos de satisfação.
A relação com a mãe possibilita uma antecipação de uma unificação do corpo. Na medida em que a mãe nomeia, fornece à criança elementos para constituir uma imagem de si mesma. A criança se vê no que a mãe vê nela. Isso ocorre a partir do desejo da mãe com relação a essa criança. Este desejo determina o lugar no qual esta criança vem, antes mesmo de seu nascimento, bordeando-a com inúmeros significantes, antecipando um sujeito. Para que isso ocorra, é necessesário o desejo dessa mãe, remetendo a criança a um ideal (implicando aí os ideais familiares e da cultura, do desejo dela de ter o filho, o momento em que ele veio, a história familiar dos pais), enxergando um ser unificado, capaz de realizar coisas que ainda não são possíveis (a um chute, atribui que será um jogador de um reflexo).
Há uma desproporção entre as reais possibilidades do bebê e o ideal dos pais, em relação ao qual se produz uma promessa de futuro, os pais sustentam nele certas falas que o antecipam frente a certos ideais. Tais falas recobrem o real (a incapacidade do bebê), articulando um simbólico, já preparado previamente para ele. A partir disso, situa o bebê numa filiação.
Porém, um filho, quando apresenta dificuldades na fala, nas aquisições pedagógicas, no brincar, na socialização, descoordenações motoras, hábitos e comportamentos estranhos, ocasionam um estranhamento desses pais que têm dificuldade em se reconhecer em seus filhos (VORCARO, 2013). Isso ocasiona uma vacilação no processo de filiação e consequentemente uma dificuldade de pôr a trabalho seu saber parental acerca de como cuidar dessa criança, o que esperar dela, como educá-la, promover cortes, etc. Pois essa ações provêm das expectativas que são depositadas na criança quando ela é gestada, desde o psiquismo parental.
De acordo com Vorcaro (2013), o discurso psiquiátrico oferece uma resposta diante dessa falta de (re)conhecimento parental, que ocasiona incertezas e inseguranças, proporcionando padrões de conduta, perspectivas futuras, modos de ação no trato aquela patologia específica.
O problema é que, quando uma criança é enquadrada em um diagnóstico nosográfico, se já havia uma vacilação parental na filiação desta criança, isso se concretiza. Esse tipo de interpretação e intervenção empurra para a destituição da filiação da qual a criança é proveniente. Ele perde os traços identificatórios de sua tradição familiar e passa a ser filiado pela nosografia, seu nome e suas características passam a ser descritos e reconhecidos a partir de uma genealogia médica.
O mais problemático disso tudo é que, além de intervir na relação da criança com os pais no presente, esse discurso também interfere no futuro dela, na medida em que prediz o prognóstico de sua patologia. Os pais, destituídos de seu saber, a partir da vacilação de seu desejo parental, guiam-se pelo saber anônimo do especialista.
A nomeação diagnóstica pode assumir tamanha valência que destitui o
nome-próprio da criança, substituído pela identidade social conferida pelo
nome da síndrome em que a medicina localiza (…). Estabelece-se assim sua
nova filiação, já que a paternidade, sobre-o-nome, é dada pelo nome-da síndrome,
que baliza, referencia e justifica os atos, falas e condutas da
criança, deslocando-a da possibilidade de situar-se a partir de sua ordem
própria de filiação. Inserir uma criança no laço social como ‘aquela Rett’, ‘ele
é PC’, ‘meu filho é Asperger’, é reduzi-la ao registro médico, é amputar sua
singularidade subjetiva (VORCARO, 2011, p. 228).
Isso determina o futuro de uma criança, cristalizada a partir de uma patologia, fechando qualquer possibilidade de saída/resgate de uma assunção subjetiva.
Diante desse contexto é inadimissível que nós, profissionais da infância, permaneçamos impassiveis. Se por um lado, a direção do trabalho na clínica é o de restituir o saber parental, a partir de uma ressignificação e realocação do desejo parental, deslocando a criança desse lugar mortífero, bem como instrumentalizando a criança a responder de outra forma na dinâmica familiar; por outro, enquanto cidadãos, importante um posicionamento ético e político. A articulação de profissionais de diferentes contextos que tratam da infância é extremamente importante, em especial o campo da saúde e o escolar. Além da família, a escola é por excelência o campo da infância, instituição que incide sobre a constituição subjetiva da criança.
Neste sentido, Caraffa (2013) nos lembra que em 11 de Novembro de 2012, no Dia Mundial de Luta contra a Medicalização, foi lançado na Câmara Municipal de São Paulo o documento “Recomendações Práticas não Medicalizantes para Profissionais e Serviços de Educação e da Sociedade”, o qual oferece alternativas à medicalização para lidar com problemas de aprendizagem e comportamentais (www.medicalizacao.org.br/publicacoes). São posturas de acolhimento, com um olhar
mais abrangente e uma escuta mais atenta que permitem localizar o sofrimento subjacente à fenomenologia dos ditos transtornos infantis, evitando uma rotulação
precoce e hiatrogenizante.
Para finalizar, deixo o depoimento de entrevistada em reportagem sobre a possibilidade de apagar memórias ruins. Ele demonstra que, apesar de tudo, o sujeito resiste. Como dizia Lacan, mesmo que tentemos calar: “isso fala”. “Minhas memórias estão dentro de mim para serem trabalhadas. Prefiro enfrentá-las a
apagar essa parte da minha vida”.
Autora: Mônica Fujimura Leite
Referência Bibliográfica
CARAFFA, R.C. Medicalização na Educação e na Saúde. Casa em Revista. An.3, n. 5.São Paulo, março de 2013. p.30-37.
ESPERANZA, G. Medicalizar a vida. In: JERUSALINSKY, A. e FENDRICK, S. (Orgs.). O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea. 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 53-59.
FREUD, S. O Mal – estar na Civilização (1930 [1929]. Cap 3. In: FREUD, S. Obras Completas. O Futuro de uma ilusão, o Mal – estar na Civilização e outros trabalhos. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 93-104.
KUPFER, M.C. Educação para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.
LACAN, J. O sujeito e o Outro (I): a alienação. In: LACAN, J. O Seminário. Livro11 – Os Quatro Conceitos fundamentais da Psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar.1988, p. 193- 204.
LACAN, J. O sujeito e o Outro (II): a afânise. In: LACAN, J. O Seminário. Livro11 – Os Quatro Conceitos fundamentais da Psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar.1988, p.205- 217.
LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96- 103.
LOPES, J.C.C. A Saúde Pública na contemporaneidade. Casa em Revista. An.3, n. 5. São Paulo, março de 2013. p.2-11.
MARIOTTO, R.M.M. & GIZZI, M.L.K.B. Considerações teórico-clínicas sobre a hiperatividade em crianças. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, n.24, 2012. Curitiba: APC. p. 105-115.
MOYSES, M.A.M. & COLLARES, C.A.L. Medicalização do comportamento e da Aprendizagem: consequências para a vida de crianças e adolescentes. Casa em Revista. An.3, n. 5. São Paulo, março de 2013. p.18-29.
QUINET, A. As Funções das Entrevistas Preliminares. In: QUINET, A. AS 4 + 1 condições de análise. 9 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. p. 13-34.
ROCHA,L.C. e FERRAZZA, D.A. R. A Psicopatologização da infância no Contemporâneo: um estudo sobre a expansão do diagnóstico de “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.8, n.2, p. 237-251, Jul./Dez. 2011.
UNTOIGLICH, G. Consenso de Especialistas da área de saúde sobre o chamado “Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade”. Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 144, março 2006 63 – 68. Disponível em: www.appoa.com.br/download/correio144.pdf. Acesso em: 20/08/2013.
VORCARO, A. O Efeito Bumerang da Classificação Patológica da Infância. In: JERUSALINSKY, A. & FENDRIK, S. O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Orgs.) 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 219-230.
por Vanessa Vieira
Eram 23h30 de uma noite de domingo quando o telefone tocou na casa de Cláudia*. Ela acordou sobressaltada e o marido foi atender. A notícia era que o sobrinho, de apenas 17 anos, havia se jogado pela janela do 13º andar. Ao lado do aparelho, Cláudia escutava os gritos da irmã, que acabara de perder o filho. Em meia hora, ela e o marido chegaram ao local do suicídio. Numa confusão de sirenes e luzes, os bombeiros e a polícia trabalhavam em volta do corpo do rapaz – que ainda estava no chão. Três anos se passaram, mas a cena ainda perturba Cláudia. “Até hoje, se estou dormindo e o telefone toca, acordo querendo chorar”, diz ela. Ruídos de sirene ainda provocam tremores e taquicardia. Conseguir pegar no sono nos domingos à noite também virou uma tortura. Ela só adormece quando o cansaço se torna mais forte do que as lembranças. “Se pudesse, eu apagaria da memória aquela noite”, diz.
Talvez você nunca tenha passado por uma situação tão forte. Mas certamente guarda na cabeça algum momento, ou mais de um, que preferiria eliminar – mas que sempre acaba relembrando sem querer. Todo mundo coleciona algumas lembranças ruins ao longo da vida. Isso é inevitável. Mas, no que depender de pesquisadores de várias partes do mundo, vai deixar de ser. Eles estão trabalhando num projeto incrivelmente ambicioso: a criação de uma droga que apague memórias ruins.
Isso sempre foi considerado impossível pela ciência. Mas o cenário começou a mudar no final da década de 1990, graças ao neurocientista egípcio naturalizado americano Karim Nader. Como os demais cientistas da época, Nader sabia que as nossas memórias são apenas relações de afinidade entre os neurônios. Quando você memoriza alguma coisa – o endereço da rua onde mora, por exemplo -, o seu cérebro forma conexões entre os neurônios envolvidos com aquela informação. Eles ficam mais sensíveis uns aos outros. Por isso, mais tarde, quando você tenta se lembrar do endereço, a mesmíssima rede de neurônios é ativada – e recupera a informação. É assim que a memória funciona.
Mas Nader percebeu que havia uma coisa a mais. Para que essa `amizade¿ entre grupos de neurônios se formasse, o cérebro precisava sintetizar determinadas proteínas. Ele teve a ideia de bloquear a ação dessas proteínas para ver o que acontecia. Primeiro, passou várias semanas ensinando um grupo de ratinhos a associar um determinado som com um pequeno e doloroso choque elétrico. Sempre que o som era tocado, os camundongos levavam um choque (vida de cobaia não é fácil). Com o tempo, eles aprenderam a lição – e ficavam com medo assim que ouviam o som. Até que Nader injetou neles uma droga que inibia a síntese das proteínas da memória. O resultado foi dramático, e deixou o cientista boquiaberto. Os ratinhos pararam de reagir com medo quando o som era tocado. “A memória de medo tinha partido. Os ratos tinham esquecido tudo”, diz Nader. O esquecimento era permanente, ou seja, persistiu mesmo depois que a substância já havia sido eliminada do corpo dos animais.
Essa experiência mostrou, pela primeira vez, que era possível apagar memórias. Isso acontece porque, a cada vez que tentamos acessar uma lembrança, ela passa por um período de instabilidade, num processo chamado de reconsolidação. Ele tem três etapas. Primeira: a informação sai do banco de dados do cérebro. Segunda: ela chega à sua consciência e é acessada. Terceira: a informação é gravada novamente no banco de dados. Nader descobriu que, se você bloquear uma determinada proteína, a terceira etapa simplesmente não acontece – e a memória não é regravada. Ela some para sempre.
Nader foi além. Ele queria saber se era possível apagar apenas uma memória específica, ou se o processo acabava deletando outras lembranças de forma involuntária. Então fez mais um experimento. Primeiro, fez os ratinhos memorizarem uma sequência de sons que precediam o choque. Depois, tocou apenas um som daquela sequência antes de injetar a droga apagadora de memórias. Resultado? Os ratinhos esqueceram apenas aquele som – todos os demais continuaram gravados na memória, associados ao choque. Ou seja: não só é possível apagar memórias, é possível fazer isso com precisão de frações de segundo. Nader não sabia direito em qual proteína cerebral deveria mirar, e fez testes com várias. Até que o neurologista Todd Sacktor, da Universidade Columbia, encontrou o alvo. É a proteína PKMzeta, que está envolvida com a passagem de sinais elétricos entre os neurônios. Se você bloquear a PKMzeta enquanto o indivíduo está se lembrando de alguma coisa, você destruirá aquela memória. Sacktor provou isso numa experiência em que ratos recebiam uma injeção de lítio – que provoca náuseas – sempre que comiam algo doce. A intenção era fazer com que as cobaias associassem o sabor com o enjoo. A estratégia funcionou, e logo os animais passaram a rejeitar comida doce. Mas, com uma simples injeção de um inibidor de PKMzeta, eles esqueceram aquilo e voltaram a gostar de doces. Os cientistas dizem que é preciso fazer mais testes para entender qual é o real efeito disso no cérebro – e saber quais são os possíveis efeitos colaterais, se existirem. Se usada de forma descontrolada, a técnica poderia levar à destruição de memórias saudáveis. “Os efeitos da inibição da PKMzeta parecem ser mais potentes. O desafio está em regular essa potência. Nós estamos trabalhando nisso”, afirma Sacktor.
Mexer na PKMzeta é dar um tiro de canhão. O ideal seria encontrar proteínas ainda mais específicas, que permitissem apagar só as emoções associadas a uma memória ruim – sem destruir a memória em si. Isso permitiria que uma pessoa pudesse se libertar do sofrimento associado a uma memória, sem necessariamente esquecer que aquilo aconteceu. Isso é importante porque preserva o aprendizado que conquistamos ao viver situações ruins. Alguém que sofreu um acidente de carro, por exemplo, ainda se lembraria do acidente – e, por isso, dirigiria com responsabilidade. Só a angústia e o trauma ligados ao acidente seriam deletados. “As pessoas poderiam se lembrar, sem ser sufocadas por aquela memória traumática, podendo seguir adiante com suas vidas”, acredita Karim Nader, hoje professor da McGill University, no Canadá. O método: você iria a um consultório médico e, sob a supervisão de um terapeuta, relembraria um fato desagradável. Ao mesmo tempo, receberia a injeção de uma droga inibidora de proteínas. E, como que por mágica, aquela memória que sempre incomodou tanto deixaria de ser um trauma.
Isso já parece incrível, mas existe uma corrente de pesquisadores trabalhando em algo ainda mais impressionante (e assustador também). Em vez de apagar as memórias, que tal modificá-las?
BRILHO ETERNO
Cientistas da McGill University e da Harvard Medical School descobriram que o propranolol, um remédio usado para tratar pressão alta, tem um efeito colateral estranho: é capaz de alterar memórias armazenadas no cérebro. Isso acontece porque ele inibe a atividade de um neurotransmissor, a norepinefrina. Os cientistas fizeram testes com pessoas que tinham passado por alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram convidadas a relembrar o fato. As reações mais intensas de medo e emoção desapareceram, e esse efeito se manteve mesmo depois que os voluntários não estavam mais sob efeito do remédio. Segundo os cientistas, isso acontece porque ele interfere na reconsolidação da memória, que é alterada e perde sua carga emocional negativa antes de ser regravada pelo cérebro.
Num documentário sobre o estudo produzido pela McGill University, uma paciente chamada Louise conta que finalmente conseguiu superar um trauma de infância graças ao propranolol. Estuprada por um médico quando tinha apenas 12 anos, ela sofreu durante toda a vida as sequelas psicológicas disso. “Eu não conseguia nem trocar de roupa na frente do meu marido”, relata. Graças ao tratamento, Louise diz que as memórias recorrentes e pesadelos desapareceram, bem como o medo de tirar a roupa.
No Brasil, também há pesquisas em torno de formas de promover o enfraquecimento de memórias traumáticas por meio do uso de drogas específicas. Uma delas, realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), investiga a ação do topiramato, um remédio atualmente usado para tratar convulsões. O topiramato seria capaz de inibir a produção de um neurotransmissor, o glutamato, que age no hipocampo – a região do cérebro que coordena o processo de formação de memórias. Em situações de estresse, o nível de glutamato ali aumenta. Isso poderia explicar, por exemplo, os pensamentos repetitivos que podem acompanhar uma experiência traumática. “Nossa hipótese é que, ao reduzir a liberação do glutamato, podemos inibir a reverberação de uma memória traumática”, explica Marcelo Feijó, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. No estudo, mais de 82% dos pacientes tratados com a substância apresentaram melhora dos sintomas de estresse pós-traumático.
O estresse pós-traumático é caracterizado por sintomas como ansiedade e depressão e está relacionado à lembrança de algum evento traumático envolvendo ameaça à vida ou à integridade, como assaltos, sequestros, estupros ou acidentes graves. O problema afeta 6% da população mundial, 420 milhões de pessoas. Um medicamento que fosse eficaz contra ele poderia melhorar a vida de muita gente.
As substâncias capazes de apagar memórias ruins também poderiam ser usadas para tratar dor crônica. Por razões que a ciência ainda não compreende completamente, em alguns casos, mesmo depois que um ferimento físico já foi curado, alguns nervos continuam transmitindo sinais de dor na região, como se o corpo tivesse memorizado aquela dor. A técnica também poderia ser usada como um tratamento para a dependência química. Isso porque o vício em drogas está relacionado à memória – à associação entre o uso da droga e o efeito que ela proporciona. Se a pessoa se esquecer do prazer que sente ao consumir a droga, fica mais fácil largar o vício. Num estudo realizado com ratos viciados em morfina, a inibição da proteína PKMzeta ajudou a curar a dependência dos roedores.
Em suma: mexer com as memórias pode trazer consequências muito boas. Mas também pode ser extremamente ruim. O Conselho de Bioética da Casa Branca já se manifestou sobre o assunto, apontando várias situações em que o apagamento ou a alteração de memórias pode ser uma coisa ruim, antiética ou imoral. Um bandido poderia recorrer à técnica para se livrar da culpa por ter praticado um crime, por exemplo. Governos poderiam preparar seus soldados para matar – ou para voltar a matar – sem conflitos emocionais. “Corremos o risco de falsificar nossa percepção e entendimento do mundo. Nos arriscamos a fazer com que atos vergonhosos sejam considerados menos vergonhosos, ou menos terríveis, do que realmente são”, diz o relatório.
Para a psiquiatra, psicanalista e bioeticista carioca Marlene Braz, a possibilidade de mudar ou apagar memórias poderia ter consequências até sobre o sistema jurídico. “Haveria uma tensão entre o direito individual de uma pessoa – que decidiu esquecer – e o direito da coletividade, já que, na prática, isso significaria subtrair evidências de um processo, já que não poderíamos contar com o testemunho daquela pessoa”, diz ela. Délio Kipper, professor de Bioética do curso de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul, ainda aponta outros conflitos nessa área. “A modificação de memórias poderia induzir a mudanças nos testemunhos. É um caminho muito perigoso”, diz.
Até quem teria todos os motivos para alterar a própria memória vê essa possibilidade com desconfiança. Como a empresária paulistana Paula*, de 31 anos. Numa manhã de sábado, em 2005, ela saiu do quarto e viu manchas de sangue pela casa. Em desespero, tentou abrir a porta do quarto do pai, que sofria de depressão. “Eu batia na porta do quarto e ele não abria”, recorda. A empresária chamou a polícia e, quando a porta foi aberta, se deparou com uma cena que vai ficar gravada para sempre na sua mente. “Ele havia cortado os pulsos e se enforcado”, lembra. Sete anos depois, Cíntia admite que ainda não lida bem com as lembranças desse episódio. Mas diz que, mesmo assim, jamais tomaria um remédio para esquecer esse momento da sua história. “Minhas memórias estão dentro de mim para serem trabalhadas. Prefiro enfrentá-las a apagar essa parte da minha vida”.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
PARA SABER MAIS
Reconsolidation as a Link Between Cognitive and Neuroscientific Memory Oliver Hardt, Einar Örn Einarsson e Karim Nader Annual Review of Psychology,
2010 http://super.abril.com.br/ciencia/pilula-esquecimento-721071.shtml
Deixe uma resposta
Want to join the discussion?Feel free to contribute!