A Insistência do Gozo e a Prática da Letra
Primeiro, gostaria de dizer que estar aqui nesta posição de transmitir minha experiência é algo que cada vez mais ganha sentido no meu percurso. Portanto, é nessa direção, de transmitir minha experiência, que vou tentar leva-los hoje. Antes de prosseguir, gostaria, também, de fazer uma ressalva sobre meu título. Quando pensei nele estava planejando seguir por outro caminho. Estava pensando em falar da clínica apresentando um caso clínico e trabalhando a temática do gozo e da versão do pai. Mas… para quem já se aventura nas leituras de Lacan sabe que a cada encontro com seus textos surge sempre algo novo, algo que nos surpreende, nos arrebata e que é capaz de bagunçar nossos pensamentos e nos fazer mudar o caminho daquilo que havíamos planejado. Pois foi exatamente isso o que aconteceu.
Pois bem, se antes estava pensando em falar da clínica dessa maneira, num dado momento, que não sei precisar bem, este tema deixou de me convocar e com isso a vontade de escrever sobre ele passou. O problema é que, inicialmente, não veio outro tema para substituí-lo. Então tinha ficado absolutamente sem tema. Mas com o tempo fui percebendo que outras questões iam sendo tocadas na medida em que eu ia trabalhando o Seminário 20. Estas outras questões atingiam em cheio as interrogações e inquietações que eu tinha acerca do meu trabalho com a psicanálise (atividades da Associação, função da análise de controle, a posição do analista,
a direção do tratamento, etc.). Quando percebo a forma como o texto do cartel estava me afetando, resolvo escrever sobre isso. Mas na hora, quase instantaneamente, surgiu outra dúvida que me fez hesitar: como articular todas essas questões que estavam sendo tocadas pelo trabalho de cartel com a clínica e com o tema de nossa Jornada?
Depois de um tempo de trabalho em torno do texto de cartel, curiosamente chego a evidente conclusão:
- Que todos os elementos devem ser tomados como se constitui a própria cadeia borromeana, onde se uma se soltar as demais também se soltam perdendo suas funções. Portanto, a prática clínica, a participação nos fóruns (escutar atenciosamente os textos dos colegas, comentar seus textos, apresentar textos e ouvir e considerar as questões), a participação nos seminários do Aurélio e de outros analistas, coordenar grupo de estudos, fazer análise e análise de controle,
tudo isto não deveria ser tomado como elementos separados, disjuntos, ou hierarquizados, tal como: a prática é a mais importante, a supervisão a segunda mais importante, o estudo teórico a terceira, e assim por diante.
Como disse, para que elas possam produzir efeitos devem ser consideradas como encadeadas borromeanamente; e se possuem a mesma estrutura da cadeia, não há valor que as diferenciem. Elas produzem efeitos nos mais diferentes lugares em função da estrutura de cadeia. Penso que seja por isso que um trabalho de cartel ou a participação dos fóruns podem produzir efeitos nos mais diversos aspectos e localidades. Por isso que falar dessa experiência é, a meu ver, também falar da forma como faço a clínica. Acredito que este encadeamento borromeano dos dispositivos citados (atendimentos, cartel, fórum, análise, análise de controle, grupos de
estudos, seminários, etc.) sempre apontam para um ponto específico na estrutura: a posição do analista. É como se a posição do analista ocupasse o coração da cadeia, no lugar onde está o ‘a’; portanto todos os efeitos de alguma forma tocam nisso.
E poder circular nesses dispositivos não é fazer nenhuma revolução, como disse Lacan, mas é fazer com que o discurso analítico circule e, com isto, possa exercer sua função. No Seminário 20 Lacan recupera uma ideia que trabalhou numa das conferências que deu em SaintAnne, conferências que coincidiram com o momento em que proferia o Seminário 19, e que ele fala sobre essa ideia de fazer circular o discurso analítico e afirma que circular não implica fazer nenhuma revolução, pois a circularidade sempre leva ao mesmo lugar, ao mesmo ponto. Lacan utiliza a palavra “circular” de forma bastante precisa. Circular, para ele, é circular através dos discursos (discurso do mestre, do histérico, do analista e da universidade).
Um exemplo simples que pode ilustrar isso que estou tentando transmitir. Entramos no discurso do mestre tentando sustentar uma certa completude no saber, camuflando nossa divisão ($) sob a barra, mas os textos, o convívio com os colegas de associação, a análise, tudo faz experimentarmos que não há suposta completude, que sempre seremos sujeitos divididos ($) com relação ao saber. Podemos, então, a partir dessa incompletude do saber, circular para o discurso
histérico e, dessa forma, produzirmos um saber, singular, de nossa responsabilidade, de nossa autoria, que poderá ser compartilhado nos fóruns, nos grupos de estudos, nos comentários que fazemos sobre os trabalhos dos colegas, nas Jornadas, etc. O discurso analítico, pela lógica que Lacan nos apresenta na teoria dos discursos, só pode ser alcançado por meio desse movimento circular.
Para podermos fazer semblante de ‘a’, que é a estrutura do discurso analítico, temos de ter circulado, pois os discursos são interdependentes. Lembrando que em todos os discursos, exceto no discurso analítico, há produção de gozo. Dessa maneira, ao gozarmos nas posições discursivas que precedem ao discurso analítico, chegamos neste discurso suportando renunciar qualquer gozo; condição fundamental para exercer a função de analista. Constato, mais uma vez, que é impossível pensar de forma separada os dispositivos da psicanálise. Para mim, neste sentido, ficou bem mais claro o lugar que a Associação e os dispositivos ocupam no meu
percurso de produção de um analista. Este é o sinthoma que pude produzir com os trabalhos deste ano e colher seus efeitos. Relembro-lhes, então, uma passagem no Seminário 23 que Lacan afirma que ser psicanalista é um sinthoma. Isto é, uma produção singular em que vamos achando respostas e argumentos que sustentem nossa decisão de trabalhar com esse negócio esquisito e maluco que é a psicanálise.
Agora gostaria de falar um pouco desses efeitos que pude colher neste ano e argumentar teoricamente a forma como tento sustentar minha prática clínica, o meu fazer clínico. Percebo em mim que a psicanálise ficou mais leve, mais sustentável. De uns anos para cá percebo mudanças. Passei a ver a psicanálise como uma prática muito respeitosa e acolhedora. Mas tais características não excluem o fato de que é uma experiência muito difícil e dolorosa. Constato isso quando estou no divã. Antigamente via a psicanálise como uma prática que deveria ser feita com sofisticação. Por exemplo: achava que temas deveriam ser priorizados. Nos relatos deveriam estar o mito edípico, os sofrimentos amorosos, as demandas, a vida sexual, e por aí vai. Só que não percebia que nessa lógica de dar prioridades a certos temas acabava ficando completamente surdo para o que de fato interessa num tratamento: as “bobagens” que os analisantes dizem.
No Seminário 20, que foi o texto trabalhado em cartel neste ano, Lacan diz algo muito simples mas muito importante que me permitiu recuperar, repensar e avançar o trabalho que fiz no ano passado sobre o Seminário 23 que apresentei na Jornada. Bom, Lacan, no Seminário 20, diz que a análise se faz de bobagens, nada mais. Isto é, nos adverte que não devemos nos preocupar em priorizar temas ou assuntos, mas que devemos fazer com que o analisante fale e produza nos seus ditos bobagens. Ao falar bobagens num dispositivo analítico, sustentado pelo discurso analítico, o analista é capaz de tirar consequências dessas bobagens. É capaz, a partir dos significantes do analisante, que são da ordem da escuta, portanto do som, deixar que algo se escreva: a letra.
Dos significantes que vão aparecendo nos ditos do analisante vão se escrevendo letras que denunciam suas relações de gozo que estão impressas em seu corpo (que não é o organismo) e que o analista, apenas se exercer sua função, é capaz de ler. A partir dos significantes produzidos pelos ditos temos de ler a letra. Neste sentido Lacan, no Seminário 20, deixa bem definido a distância que a linguisteria tem da linguística. Na linguística o significante tem um significado, mesmo que este significado seja definido a partir de um contexto. Contudo, na linguisteria os significantes são elementos sonoros destituídos de qualquer significado. São esses significantes que compõem a estrutura de alíngua (lalangue) e fazem as marcas no corpo (encorps) do falasser registrando as letras que representam as pegadas do Outro nesse deserto de gozo que é o corpo do falasser. As letras são partículas, moléculas, átomos, dos significantes da estrutura de alíngua que registram as formas como o falasser foi supostamente gozado pelo Outro enquanto objeto1.
Na linguisteria o significado é de responsabilidade do analisante e diz respeito à escrita, portanto está articulado à letra; ao passo que o significante está relacionado ao som. Mas, afinal, do que se trata ler a letra a partir da sonoridade significante? Penso que é justamente provocar dissonâncias nesse corpo recortado pelos significantes da estrutura de alíngua. É colocar em cena, através da manobra analítica, a inexistência da relação sexual, pois a única relação que o falasser estabelece é com os objetos pulsionais do seu próprio corpo recortado pelo significante. Para Lacan, no Seminário 20, a relação possível é auto-erótica – com pedaços do próprio corpo – e por isso que não há possibilidade de encaixe perfeito entre sujeito e objeto; o que sustenta a ideia de que a relação sexual não existe. É nesse sentido que o amor vem em suplência a não existência a relação sexual, pois veste esse objeto pulsional de uma forma idealizada e, como diz o Aurélio, de forma kantiana, fazendo com que se crie uma miragem de bom encaixe, miragem de que a relação sexual pode existir. O amor vem justamente tentar cobrir o fato de que o falasser goza do corpo. Bom, mas antes de continuar, esta expressão deve ser aclarada. Temos, para aclarar este termo, de considerar esta expressão “gozo do corpo” no genitivo objetivo e no genitivo subjetivo2; isto é, de que se goza do corpo e de que o corpo é que goza. Considerar esta expressão no genitivo objetivo e subjetivo implica considerar que para que o falasser possa gozar dos pedaços do corpo deve-se ter de forma mítica e fix-ctícia um momento em que esse corpo foi gozado, foi feito de objeto de gozo do Outro.
É em função dessa via de mão dupla do gozo que ele sempre conduz ao pior. Ser gozado pelo Outro, ser reduzido a um objeto pulsional, é se tornar um objeto merdificado, mastigado, escopicizado/perseguido, ensurdecido, ruidoso, mijado, vomitado, arrotado, fedido, dentre outros. Estes são os objetos demandados pelo Outro e que servem exclusivamente para ser gozados. A relação sexual não existe, pois a relação não acontece entre dois corpos, dois seres, e sim do falasser com seus próprios objetos pulsionais. Por isso o gozo é auto-erótico. O sintoma, por sua vez, é uma forma de gozar que maquia o gozar do corpo (pelo Outro) por meio do amor e do ideal narcísico. É uma resposta sofrida a não existência da relação sexual, mas que satisfaz e evita o encontro com essa ordem do pulsional; que seria muito mais devastador se não for feito de forma calculada.
Neste Seminário Lacan insiste na dificuldade de o falasser se a ver com isso que é da ordem do gozo. Diz que preferem levar sua vida dormindo. Permito-me brincar com a linguisteria e faço desse significante letra e digo “dor-indo”. Ao estar ignorante, ao não querer saber de nada disso, como diz Lacan no Seminário 20, levam uma vida com dor e vão indo numa deriva de gozo em que se traça como destino certo os sofrimentos e fracassos que insistem em aparecer. Por sua vez, ler a letra é recuperar isso que é da ordem do gozo do corpo e fazer com que o falasser possa escrever e dar um significado produzindo um saber sobre o seu gozo. Somente assim pode dar outras repostas para a não existência da relação sexual e com isso escrever um sinthoma.
No entanto, a escrita de um sinthoma é lenta e dolorosa, pois parte dessa recuperação da condição de objeto gozado que o falasser foi colocado em sua hystória, em sua novela, em sua fix-cção. Lacan diz nas conferências de Saint-Anne que a interpretação aponta sempre para o gozo. Algumas semanas depois dessa formulação ele complementa, no Seminário 19, que na realidade quem interpreta é o analisante. O analista apenas cria condições favoráveis para isso. Mas mesmo que a interpretação seja de responsabilidade do analisante, a intervenção do analista precisa ser feita com muito cuidado, tolerância e respeito para não rasgarmos a roupa narcísica e amorosa deixando pelado o objeto pulsional. O resultado disso pode ser devastador (aumento de angústia e até passagem a ato = suicídio). Esta posição tolerante e respeitosa Aurélio não se cansa de nos advertir em seus seminários. Digo que hoje posso experimentar essa advertência de uma outra forma que não seja pela via da compreensão. Hoje não compreendo, mas leio, escrevo e explico3. Ao explicar, isso se singulariza e passa a ser de minha responsabilidade, de minha
autoria e por isso faz eco em meu corpo.
Para finalizar, gostaria de dizer que esta lógica clínica que discuti hoje com vocês é muito presente nos pacientes que pude acompanhar no meu percurso. Quantos relatos existem com a mesma estrutura semântica dizendo: “Quando as coisas começam a mudar, eu coloco tudo a perder”; “Quando conquisto algo, nem dá tempo de comemorar”; “Quando encontro um curso que amo sou internado e tenho de parar”; “Quando a minha filha retorna e tudo parecia bem eu a deixo morrer”. São algumas falas de pacientes que pude acompanhar e que apontam para isso que é da ordem de uma insistência (uma desgraça que insiste) e que são, inicialmente, tomadas como fatos externos, uma obra de um destino cruel, um puro acaso. A psicanálise pode fazer com que esse destino, sentido como injusto e devastador, possa ser reescrito e mudado. Para tal, o preço que o falasser paga, para além do dinheiro, é de se dar conta que há uma satisfação em jogo nessas situações, pois tais destinos talvez apontem para esse lugar de objeto gozado pelo Outro. A psicanálise proposta por Lacan pode, portanto, interromper a série desse suposto destino cruel que sempre insiste pedindo mais, mais, Mais, ainda… (encore, encore, encore…).
Autor: Edinei Suzuki
1 Utilizo o termo “supostamente gozado” porque o Outro não existe, mas o falasser constrói uma fix-cção sobre o Outro.
2 Genitivo objetivo: eu gozo do corpo. Genitivo subjetivo: o corpo é que goza.
3 Explicar em sua raíz etimológica alude ao sentido de desenrolar uma espécie de barra em tecido.
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