“Não fui Eu”

No gramado uma criança de 5 anos brinca de bola. Num, rompante, chuta com força e acerta meu rosto, me machucando. Como uma boa adulta, querendo ensinar – lhe a consideração ao outro, paro o jogo e falo que assim não. Imediatamente, a criança diz: “Não fui eu!” “Foi ele”, apontando para seu pé. E era verdade.

O que essa criança me dizia é que não tem controle sobre o seu próprio corpo. A excitação que a acomete está para além do controle do eu. Numa outra ocasião, deixa cair objetos no meio do caminho. Frente a tal atitude, mais uma vez eu, incomodada com a bagunça e querendo ensinar – lhe as consequências de seus atos, lhe pergunto se não vai pegá – los. Ela manda eu pegar. Frente a essa resposta, eu tinha duas opções: ou impunha minha autoridade, mandando – a pegar à força, ou (e foi o que fiz), reconheci a dificuldade daquela criança em poder se responsabilizar pelo que fazia e me propus a auxiliá – la nesse processo. Ele aceitou a ajuda.

E assim trabalhamos durante esse ano. A queixa da mãe era a de que essa criança fazia coisas que a caracterizariam como uma criança “mal educada, desobediente”: cuspia, soltava puns, arrotava, machucava seus amiguinhos, empurrando – os ou chutando – os e diante do “não”, emburrava ou fazia o contrário do que lhe era solicitado.

Tal criança despertava nos adultos que lidavam com ela, raiva e a atitude de brigar e obrigá – la a obedecer e se submeter ao processo educativo imposto a todas as crianças. Comigo não foi diferente. Me vi defronte então a dois caminhos: podia dar vazão ao meu furor pedagógico ou fazer um esforço para ouvir um sujeito. Admito ser uma escolha difícil e por muitas vezes confundi as duas posições.

A educação vem a auxiliar o processo de recalque do modo de satisfação infantil. O infantil (que independe de idade cronológica) é o incurável da sexualidade humana. Isso porque no homem, a sexualidade não se restringe à genital, a qual possui uma função biológica (de reprodução); mas é constituída de outras zonas erógenas, e as pulsões parciais se caracterizam por uma variabilidade em seus fins e objetos. A criança, na qual ainda não se impôs o recalque, é polimorfa perversa, encontrando poucas resistências a se satisfazer dessas formas.(CIRINO, 2001 e MILLOT, 1987). O trabalho da infância é então o de renunciar a tal modo de satisfação, e ela o faz por amor à mãe ou ou medo do pai.

Que modo de satisfação é esse? Voltemos ao início, na relação mãe – bebê: Toda criança se põe como objeto de completude de sua mãe. E realmente, as crianças não podem dispensar os adultos, dependem deles para sobreviver, no orgânico e psíquico. Se não se fizerem como tal objeto de completude, ao menos um semblante disso, são abandonadas. O que diferencia o modo como vão fazer isso é se passaram por dois operadores lógicos, o Estadio do Espelho (LACAN, 1995) e a castração (Freud).

No estadio do espelho, a criança se vê fora, num espaço que não é o do vivido, uma imagem unificada e completa com a mãe, fundando um ideal e ao mesmo tempo uma falta. A criança então passa a ter recursos para garantir a presença do Outro, oferecendo-se como imagem que visaria completar a falta no Outro. A relação entre a mãe e a criança não é portanto dual, mas mediada pelo falo imaginário. Se a criança tem esse recurso, a fim de colocar – se como o objeto de completude de suas mãe, não necessita ser de fato tal objeto, pode fazer um semblante. Já existe uma diferença entre a criança e o que ela representa para a sua mãe. Ela está num lugar fálico, não objetal. Ou seja, existe um espaço para a falta, para o que poderia ser mas não é. Tal experiência da falta, possibilita à criança um espaço para a dúvida e o desejo:se ao Outro falta, o que deseja? O que posso oferecer a ele para o completar? Então, o que o Outro deseja de mim?

Isso só é possível se mãe e criança tiverem o registro da castração. Isso é realizado pela Função Paterna, a qual impede a criança ao acesso pleno à completude, permitindo a ela transcender essa relação para além do desejo da mãe. É a mãe que faz a entrada do pai, em seu discurso e seu desejo, como algo que está para além dela, uma lei à qual tem que se submeter. O pai põe um basta nesse mais de satisfação, impondo uma lei de interdição. Substitui o significante do desejo da mãe pelo significante Nome do Pai, fazendo metáfora. Restitui o falo ao seu lugar, como objeto de desejo da mãe, distinto da criança e o qual ele é o portador. Esta reposição é uma castração da criança e da mãe. Quando a Metáfora Paterna se realiza, o sujeito conta com a cadeia significante para lidar com a demanda do Outro, de maneiras diferentes, segundo as versões que faz dela, a partir da ordem simbólica. Isso significa recalque; ou seja, as coisas não vão diretamente para o  ato, têm a mediação da palavra, de um julgamento e podem se transformar em outra coisa.

No caso desta criança, a lei estava ligada ao amor à mãe. Esta lhe pedia que fosse obediente cobrando – lhe um pagamento por tudo o que fazia por ela: deixava de fazer coisas para si, mudou o horário de trabalho para poder passar mais tempo com ela, fazia um esforço real para dar a essa criança tudo o que ela lhe pedia: sua presença. E essa criança se esforçava também para ser um bom menino: tentava ser o primeiro da fila na hora de entrar e nas aulas de educação física, não admitia não saber a matéria que a professora passava na escola. Mas, mesmo diante de algo que aparenta uma harmonia de quereres, algo ali caducava: a escola se queixava da criança para a mãe, dizendo de como essa atitude dela atrapalhava as aulas e os amiguinhos, pelo seu excesso de competitividade, agitação e agressividade, demonstrando que não era realmente possível um encaixe perfeito na sexualidade humana, uma satisfação plena não era possível, algo ali se perdera, para sempre. E essa mãe tinha muita raiva disso, e brigava com seu filho do porque não lhe dar o que ela lhe pede, que seja esse algo que a completa, e a criança se constrangia por não poder mais ser tudo para essa mãe.

Ao mesmo tempo, este sintoma mantinha mãe e filho juntos, pois ninguém mais era capacitado para ficar com ele e fazer – lhe obedecer, e também disso a mãe se queixava: “Não entendo, comigo ele é tão bonzinho…”

Até que essa mãe não suporta mais tal discrepância e o que antes eram ameaças (ela dizia que ia mandá – lo para morar com o pai) abandona esse filho, muda o horário do emprego e não tem mais tempo para ele, nem para levá – lo ao tratamento. Por minha insistência, eles retornam, mas agora é o padrasto que o traz. Esta foi inclusive uma exigência da mãe, que cobrava para que este participasse mais dos cuidados e educação da criança. Ela então retorna, mas mais desobediente e agressivo. Foi possível notar então o quanto a manutenção dessa barra estava embasada no amor à mãe. Segundo Millot (1987), as medidas educativas consistem em exigir da criança a tolerância a o desprazer decorrente pela renúncia da satisfação imediata, a fim de obter um outro prazer: o amor. O amor não representa para a criança apenas uma satisfação de ordem libidinal, mas também a garantia de estar protegido contra o mundo externo. Para a criança, a realidade são as demandas do outro, ela é tecida pela palavra. Quando a criança se sujava, ou quebrava algo, se assustava e perguntava: “minha mãe não vai brigar?” Quando esta mãe se retira, a criança já perdeu o que temia, e agora está desamparada frente á excitação vivida em seu corpo. Ao mesmo  tempo, continuavam as cobranças da escola para que essa criança se regrasse segundo a ordem civilizatória.

Segundo Freud, “a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos e a adaptação à sociedade — ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas(…) Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação. Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir”. Segundo Jerunsalinsky apud Petri (2003), a educação estabiliza o gozo, e é realizada primeiramente pelos pais, os quais, em nome de um desejo próprio, submetem a criança a um ideal.

Diante disso que a acomete, a criança se questiona acerca da sexualidade, em si e nos adultos, e não tem pudor de perguntar. Porém, quando isso ocorre, geralmente é rechaçada, o que acaba por ocasionar um conflito psíquico. Freud diz que aqui se instala o complexo nuclear da neurose. “A origem do recalque não se encontra na proibição imposta ao agir, mas na que é imposta ao dizer. O que não pode ser dito também não pode ser pensado conscientemente – pois para a criança o outro conhece todos os seus pensamentos – e estes se tornam tão culposos e perigosos quanto as palavras ou atos. Mas os pensamentos não se deixam suprimir com facilidade. Continuam substituindo, mesmo sendo banidos do consciente. Assim, o inconsciente seria aquilo que o outro não deve saber. A censura é executada sobre a palavra, ocultando a verdade de que as crianças sabem, fazendo – as se esquecerem. Mas a verdade retorna, como sintoma. (MILLOT, 1987)

É possível perceber então que ao tempo da infância cabe um trabalho, o qual não é fácil e não se dá sem consequências. Freud (1976) diz que “(…) muitas vezes as crianças executam essa tarefa de modo muito imperfeito.Durante esses primeiros anos, muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses”. Quando chega a nós, a criança vem como um sintoma, um corpo que não conseguiu realizar tal aprendizagem, regrá-lo segundo as vias previstas pelo Outro, ou seja, existe algo ali que é ineducável.

Temos então diante de nós um serzinho cujos pais nos pedem que o consertemos. E então, como analistas de crianças segundo o qual nos intitulamos, volto à questão dos dois caminhos: atender à demanda dos pais ou dar um lugar a esse sujeito e  ouvir se ele tem algo a dizer a respeito disso; sendo trazido, se traz uma questão a ser tratada. Nesse encontro da satisfação infantil com o corte da realidade, me questionei entre educação e psicanálise, por quais caminhos eu em particular perambulei com tal criança.

Admito que muitas vezes, como uma boa neurótica e querendo agradar aos pais, quis regrá-la segundo as leis dos homens, ensinar-lhe as convenções sociais e a consideração ao outro, a boa educação e a obediência. Um outro risco que se corre neste mesmo sentido é o de ou sair em defesa desses pais, com o intuito de auxiliá – los nessa difícil tarefa de tentar de suprimir o sintoma dessa criança; ou ainda na crítica deles, dizendo terem falhado em educar seu filho, deixando-o à mercê de suas satisfações “perversas. Mas, tentei ter como norte os pressupostos psicanalíticos, o qual diz que a supressão das pulsões na criança através de coerção por meios externos não conduz nem à desaparição de tais pulsões, nem ao seu domínio, a única repressão eficaz da sexualidade passa pela interiorização das exigências e proibições morais que a educação visa assegurar. (MILLOT, 1987). Ou seja, é necessário que a criança possa subjetivar tais exigências, tanto as pulsionais quanto as dos adultos.

Busquei então seguir pelo outro caminho, o de procurar possibilitar – lhe um espaço para formular as seguintes questões: quem sou eu para o Outro? O que o Outro
quer de mim? Isso só foi possível quando eu contive meu furor pedagógico e fui acompanhando – a em suas elaborações, em suas teorias sexuais, de modo a auxiliá-la a elaborar esse conflito, no encontro da pulsão com a proibição, duas coisas opostas que se impunham sobre ela, imperativas.

Segundo Freud, a palavra é o princípio da cura analítica. Então eu não o impedia de pôr para fora, mas o incitava a fazê-lo com palavras. Conforme ela pôde falar disso, com palavras e brincadeiras, foi podendo simbolizar isso que se passava com ela e dar um encaminhamento a essa excitação. Tentei oferecer a essa criança a possibilidade de dar conta disso que a acomete não impondo um recalque, mas construindo um saber do que se passa com ela.

E ele assim o fez, foi construindo suas teorias ali, à minha frente, brincando de cair, em acidentes de moto, da cadeira, correndo e se jogando no chão. Nessas ocasiões eu era o médico que tratava de suas feridas. Falava através disso, dessa queda, tão necessária, de se deixar cair desse lugar de objeto que supostamente completaria sua mãe, e do corte, da ferida que isso abre.

Falava do medo do pai, que ele dizia gritar com sua mãe bater nele. Também dizia de sua identificação a ele, bebendo cerveja e dirigindo, indo pescar. Comigo, ele brincava de esconder-se e achar-se e salvar-se ao sair do esconderijo antes de eu encontrá-lo. Realizava assim uma separação, ao sumir e reaparecer, elaborava as idas e vindas da mãe. Inaugurava assim um espaço para a privacidade, longe do olhar desse outro. Era possível um resguardo, para elaborar suas teorias sem que o outro saiba o que ele estava pensando. Contou de um corte no pé, e do pesadelo que teve, do medo do bicho que veio pegá-lo à noite, na primeira que passou sem a mãe, num passeio ao sítio com os tios. Ou seja, a angústia provocada por essa separação que estava se processando e mais uma vez, um corte.

Essa criança trabalhou arduamente, com o homem-aranha falou de sua questão de possuir “dois pais”, e punha um no lugar do outro, trocando suas pernas, tornando-os iguais. Com esse mesmo personagem falava de suas investigações acerca da diferença, do que tem embaixo da saia das mulheres, e do que será que um homem faz com uma mulher quando se escondem e não se deixam espiar.

Falava de seu corpo, que se manifestava e o importunava, indo fazer xixi, cocô durante as sessões, soltando puns, arrotando, cuspindo, e numa vez que fez xixi ali, na minha frente. Teve vergonha, um importante sinal de que algo do recalque ali já se impunha. Desenhava e encobria e me perguntava: o que tem dentro do corpo da gente? E queria desenhar uma mulher e apagava, errava, ficando nervoso, dizia não conseguir. Me pedia ajuda para uma pergunta muito séria: “o que essa mulher quer de mim?”

Ela fez um trabalho muito bonito, no sentido da constituição de um sujeito. Porém, em seguida foi embora, os pais arranjaram um outro jeito de lidar com isso que essa criança causava nelas. Aplacaram sua angústia com um diagnóstico (“hiperatividade”) e com a eliminação do sintoma (“Ritalina”). E eu, fiquei sem saber dos efeitos que essa minha decisão por este caminho ocasionou nesse sujeitinho, a se constituir. Freud (1976) já dizia que as resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise — e a análise como tal — muitas vezes corre perigo.

Quanto a mim, aprendi muito com ela, pois ela me permitiu saber um pouco mais a meu respeito frente a esse trabalho. Aprendi que não é possível inquerí-la do porquê  de agir assim, pois ela própria não tinha essa resposta, de onde vem essa excitação que acomete, e se ela agia assim, é porque foi a única resposta possível diante disso, não havia simbolização, era pura pulsão. A resposta era construída ali, à minha frente, na formulação de tais questões, me tomando como testemunha e interlocutora.

Isso foi uma parte do trabalho, a mais importante. Por outro lado, com relação à sua rebeldia, ela me pôs constantemente frente à perda do controle, sobre ela e sobre mim mesma, possibilitando-me verificar o quanto também sou atravessada por isso. E o quanto me angustia por mostrar ali, em ato, o que não é possível de se educar. Me fez deparar com a minha impotência frente a isso que um dia recalquei e esqueci em mim mesma, e procuro, quando me toca, mais uma vez me afastar.

Ou seja, o trabalho com a criança, ao ser permeado por brinquedos e brincadeiras parece muito leve e divertido. Mas isso não é verdade. Trata-se de algo muito sério e difícil, considero que ainda mais que o trabalho com adultos, por se tratar um ser cujo caráter está em formação, e que está muito vulnerável às nossas influências. E por outro lado, nos remete à criança que fomos um dia e cuja uma parte ainda habita em nós, remetendo-nos às nossas próprias questões a respeito de tudo isso que também vivenciamos um dia e que tanto provocou em nós. A prática da supervisão e análise pessoal são muito importantes em tais casos, pois diferente da criança, não podemos retirarmo-nos de cena, dizendo “não fui eu”, temos o dever e a ética de nos responsabilizarmos pelas nossas atitudes frente à condução de um tratamento, e se insistimos em fazer coisas cujo eu não sabe, temos o dever de ir tratá-las para que não corramos o risco de tomarmos partido dos pais ou da criança, de acordo com nossa próprias marcas e das teorias que elaboramos a partir delas.

Autora:  Mônica Fujimura Leite
Mestre em Educação Escolar pela UEL, Especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento na Infância e Adolescência pelo Centro Lydia Coriat e UNIFEV,
Especialista em Psicanálise pelo IMBRAPE e UNIDERP
Psicóloga pela UEL
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
Atualmente atua no CREAS de Ibiporã e atende em clínica particular em Londrina.

 

Referência Bibliográfica

CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com Crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

FREUD, S. Conferência XXXIV: Explicações, aplicações e orientações. In: FREUD, S.

Obras Completas. vol XXII, Imago: 1976.

LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. O Seminário. Livro 4 – Das Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas. Rio de Janeiro: Zahar. 1995, pg.96- 103.

MILLOT, C. Freud Antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1987.

PETRI, R. Psicanálise e Educação no Tratamento da Psicose Infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: FAPESP, 2003.

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