O Percurso de Uma Análise…

O texto que aqui apresento é fruto do trabalho feito a partir do cartel sobre o narcisismo. Estudar sobre o narcisismo foi um convite que chegou no momento que iniciava o mestrado, e me pareceu poder ajudar no desenvolvimento do tema que eu me propus trabalhar na dissertação, que era analisar o trauma a partir de uma vivência de catástrofe.

Em um tempo anterior a este, antes mesmo que tivesse qualquer interesse pela psicanálise quando ficava sabendo sobre situações de catástrofes, essas em que as pessoas perdem tudo, casa, pessoas queridas, documentos, etc uma questão me vinha: como encontrar forças para recomeçar? Como seria sair de uma situação como essa? A partir da psicanalise reformulo então a questão: Quando esta cobertura imaginária desaba na frente do sujeito, o que ele faz? Quando perde as suas referencias, quando elas já não podem mais funcionar, o que o sujeito faz?

Existem vivencias que colocam o sujeito em uma situação como essa, e que são bem fáceis de serem localizadas, como por exemplo, as catástrofes e as guerras. Mas para a psicanálise o sujeito não se equipara ao ser, ao ente, a pessoa. Para a psicanálise o sujeito é esse da estrutura que opera a partir de uma lógica especifica. Assim uma experiência pode ser vivenciada para o sujeito como uma catástrofe sem que isso tenha que ser reconhecido assim no social. Estou tratando aqui deste encontro com o real, com o impossível de ser recoberto pelo imaginário ou significado pelo simbólico.

Quando o real comove o sujeito, ele se abala, há um abalo em sua estrutura, na distribuição, nesta acomodação que ele faz em sua estrutura.

A partir do que tenho estudado nos grupos, seminários e textos lidos, em Lacan e em seus comentadores, penso nesta possibilidade do real poder entrar por qualquer uma das cordas, pois todos os registros estão presentes nos demais. Então para fazer essa relação com o narcisismo, reflito sobre essas vivências que podem ser experimentadas pelo sujeito como uma ferida narcísica. Esta experiência pode leva-lo, por exemplo, a buscar uma análise. Mas uma análise também pode promover, ou alcançar este pedaço do real pela corda do imaginário. É a partir deste ponto que pretendo falar sobre o que dá titulo ao meu trabalho: o percurso de uma análise. Um percurso, porém não o caminho todo. Um recorte talvez.

Para tanto vou me servir de um conto do João Guimarães Rosa, que tem um título sugestivo: O espelho. Este conto chegou até mim há uns dois anos, logo no final de nossa primeira jornada. E o sentimento que tive ao lê-lo é de que ele refletia o percurso de uma análise. E desde então pensei em escrever sobre esta articulação com o narcisismo me servindo dele. Fiz uma apresentação sobre este tema no Fórum este ano, acredito que alguns de vocês estavam presentes e possam se lembrar, agradeço as contribuições dos colegas que lá estavam e que me instigaram a continuar trabalhando. Uma preocupação foi de, ao utilizar o conto, forçar sentidos dentro do texto para que ele coubesse dentro do meu sentimento. Assim não quero forçar, mas apenas dizer de algumas construções teóricas que pude alcançar. E convido vocês a me acompanharem e no final me ajudarem a continuar neste percurso contribuindo com as suas colocações.

No conto de Guimarães Rosa a empreitada que o narrador faz parece assemelhar-se ao trabalho feito em uma análise. O narrador trata de uma tarefa que realiza com o proposito de explicar o que é um espelho e  convida o leitor a segui-lo. Inicia dizendo sobre como as pessoas passam despercebidas pela importância que tem o espelho.

Ele diz sobre uma experiência que o levou a procurar-se, a procurar “o eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio” (Rosa, 2008, p.79).

Essa experiência acontece um dia quando ele entra em um lavatório publico e avista dois espelhos um de parede e um lateral que estando abertos em um ângulo propício, assim faziam jogo. Enxerga ali o que descreve como uma figura humana, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo, dava náusea, causava ódio susto. Relata: “E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?” .(Rosa, 2008, p.79)

Penso nesta como uma experiência em que existe uma falha no que supostamente sustenta o sujeito em uma posição imaginária. Podemos entender isto a partir das operações que se dão na constituição do sujeito e na sua relação com o Outro que Lacan(1998) trabalha na formulação sobre o estádio do espelho que não se refere a uma experiência concreta, mas aos efeitos dela, ou seja, ao tipo de relação da criança com o Outro, uma relação imaginária. Ao procurar a realidade de si, o sujeito – a criança se aliena a essa parte com a qual ela se identifica e que lhe chega a partir do Outro. E que por estar ali nesta experiência com o espelho, além de chegar de forma invertida é também uma imagem virtual.

Ao entendermos que esta é uma experiência psíquica e não concreta, é possível situa-la dentro do que Flesler (2012) denomina de tempos lógicos de constituição do sujeito. Se não pensamos em cronologia não desconsideramos as possibilidades que o sujeito tem de se valer de sua estrutura para responder as demandas que lhe chegam. Não dá para desconsiderar o estado de dependência que um bebê de seis meses, por exemplo, possui, mas também não devemos desconsiderar as possibilidades  que ele já tem de resposta. Com esse direcionamento penso nas implicações do narcisismo na clinica. Quando recebemos um paciente em analise o trabalho que ele se propõe a fazer ali implica, poderíamos dizer um reposicionamento narcísico.

Uma vez que ao se tratar de um tempo lógico, está ai com esse sujeito que sendo adulto não está mais as voltas com as primeiras experiências de surpresa e júbilo diante da assunção de sua imagem no espelho, mas são ainda os efeitos disso.

O espelho não devolve uma imagem fixa, a cada encontro alguma coisa não se encaixa, e quando esta cobertura imaginária falha, vacila, o sujeito pode defrontar-se com esta parte desagradável, repulsiva e hedionda que é ele mesmo. Diante do sofrimento que isto pode causar, o sujeito, assim como o narrador pode querer procurar-se. E procurar-se no espelho.

Quem se olha no espelho, como diz o narrador “o faz partindo de um preconceito afetivo (…) ninguém se acha na verdade feio” , o que se busca, continua ele, é “ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão” (Rosa, 2008, p.79). Existem muitas propostas, não só terapêuticas que oferecem tal solução. O jogo do espelho pode até ser divertido, os parques utilizam-se deles para nos divertir, com as imagens distorcidas e caricaturais de nós mesmos, como lembra o narrador.

Mas na análise se o sujeito busca o espelho, o que encontra é a presença do analista. Assim penso no analista não como um espelho, mas que por sua presença , assim como assina-la Vegh (2001) sustenta uma dimensão imaginária, que não devolve ao sujeito uma imagem com a qual ele tenha que se identificar, e que por não ir por esta via possibilita tornar presente o real que coloca limite no campo do Outro. Esse limite que está ali onde o sentido que vem do Outro falha, que se coloca em cena, por exemplo, no assinalamento do tropeço das palavras ditas, ou na surpresa que faz calar a partir da intervenção que se escuta.

É no encontro sempre faltoso com o Outro, que uma análise propicia, em um ângulo que faz jogo, que o sujeito pode ir pouco a pouco percebendo a sua implicação nessa estética da qual ele se veste e ir se responsabilizando por isso.

O narrador segue em sua experiência de procurar se encontrar no espelho, no modo de focar, na visão: olhar não vendo. E pouco a pouco a sua figura ia se reproduzindo no espelho de forma lacunar, e ele ia percebendo o elemento hereditário “ as parecenças com os pais e avós” , as ideias e sugestões de outrem que se materializavam em sua imagem, e exclama: “Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto”(Rosa, 2008, p.82). Momento de perceber os efeitos que tem para o sujeito o atravessamento da linguagem, desse discurso que o antecede.

O narrador segue relatando a sua empreitada de ir aos poucos se desvencilhando desses aspectos que estão ali na sua imagem, apagando os contornos até o ponto em que um dia ao olhar no espelho não vê nada, e exclama: Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? (Rosa, 2008, p.83).

Tarefa árdua e difícil, pois a cada contorno apagado é também uma possibilidade de cair no vazio, na falta de contornos que sustentem o sujeito. Se na análise o analista sustenta a sua presença, possibilita o trabalho de desvencilhamento dosando a angustia que esse caminhar propicia. Angustia antecipatória do encontro com o objeto. Posso faltar como imagem no espelho? Podes me perder?

Se o trabalho continua, é possível pouco a pouco prosseguir, com cautela nesse apagamento dos contornos do que encobre o traço que representa o sujeito, esse traço que o distancia do sentido do Outro, o traço do desejo. Até o momento de virada em que o sujeito contando com sua estrutura (Real/Simbólico/Imaginário), a partir do dispositivo da análise, promove uma movimentação, resignificando, incluindo outras possibilidades em sua existência.

O narrador segue questionando o que é a sua existência, o que ele é? E fala dos sucessos que consegue que são de ordem muito intima, e afirma:
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação. (Rosa, 2008, p.84).

A moldura do espelho continua ali, e mesmo os traços, pois os contornos são apagados, mas os traços não. E a partir dele o sujeito pode ir construindo uma outra estética de si, apropriando-se do seu desejo.

O narrador diz sobre o que muito mais tarde pode distinguir no espelho: um rosto, o seu rosto, um rostinho de menino, de menos-que menino.

Volto ao título do meu trabalho : o percurso de uma análise, para pensar aqui para onde este percurso pode apontar e seguindo Isidoro Vegh penso que uma análise não visa que o sujeito não adoeça mais, mas que ele possa andar pela vida com menos sofrimento. Freud (1914) no texto Narcisismo: uma introdução, fala que se diante do sofrimento o homem não for capaz de armar pode adoecer. A partir de Lacan, se consideramos o sujeito a partir de sua estrutura, que enoda o real, o simbólico e o imaginário, e também amor, desejo e gozo, poderíamos reformular o texto Freudiano e acrescentar se ele não for capaz de amar, desejar e gozar.

Autora: Mônica Maria Silva
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
www.associacaolivre.com.br
e-mail: monicasilva@associacaolivrepsicanalise.com.br

Texto apresentando na III Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – em 21 de novembro de 2015.

 

Referência Bibliográfica

Flesler, A. A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras completas de Sigmund Freud (Vol.14, p.81-108). (J.Salomão. Trad.) Rio de Janeiro: Imago. (1996 – Original publicado em 1914)

Lacan, J. O estádio do espelho como formação da função do eu. In: Escritos (p.96 – 103).Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Vegh, I. As intervenções do analista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2001.

Rosa, J.G. (2008) O espelho. In Rosa, J.G. Primeiras estórias (p.76-85). Rio de Janeiro: Mediafashion.

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