Passo a Passo

Quando recebi, com muita alegria, o convite do Espaço Moebius com o tema desta Jornada, logo me ocorreu um pensamento que definiu o que abordaria em minha fala e também intitulou meu trabalho. Pensei: passo a passo; a prática clínica se produz passo a passo. Decidi me deixar levar por esta associação para escrever meu texto e compartilhar um pouco como tenho pensado e trabalhado a clínica e, em especial, como entendo que uma prática clínica vai se construindo.

Assim, já vou delimitando uma primeira formulação que hoje considero fundamental, mas, confesso a vocês, me custou muito tempo e trabalho: existe mais de uma psicanálise e, portanto, mais de uma clínica, há plural para ambas. Psicanálise, no singular, é aquela que cada um pratica a partir de um estilo próprio produzido, em especial, com a análise pessoal e de acordo com a adoção de uma determinada lógica a respeito de noções cruciais como as de sujeito, estrutura, inconsciente, transferência, ato analítico, cura, entre outras.

Enfatizo que levou muito tempo para que essa formulação pudesse ecoar de maneira efetiva em minha prática e posição como analista. No chamado frescor da juventude, época da vida que acredito combinar mais com calor do que com frescor, defendia com veemência a existência de uma só psicanálise, a única verdadeira. Tudo o mais que levasse tal nome era equívoco ou mesmo má fé, desvio, charlatanismo, enganação. Não pensem que voltei a acreditar em Papai Noel e tenho uma fé pura na humanidade, acho até que estou bem longe disso. Como em qualquer outra área de atuação, também existem equívocos importantes naquilo que, muitas vezes, se professa em nome de alguma psicanálise. Entretanto, tais distorções não excluem a existência de mais de uma leitura da teoria e de diferentes maneiras de trabalhar com a psicanálise de forma séria e ética. Existem diferentes lógicas que orientam as diferentes clínicas psicanalíticas que praticamos.

Atualmente considero que um dos passos mais importantes no processo de produção de um analista e de sua prática é a escolha de uma psicanálise a partir da qual constrói a clínica que pratica. Essa escolha e o trabalho que aí se produz embasado numa determinada lógica é o que legitima a clínica que se exercita.

Sigo fiel ao propósito de me deixar levar pela associação inicial (passo a passo, a prática clínica se produz passo a passo) e abro um segundo aspecto de trabalho. A expressão passo a passo comumente é associada a um ritmo lento, que demanda tempo, algo feito com tranquilidade e sem pressa. A rapidez nunca foi meu forte. A persistência me cai melhor. Sempre gostei de ditados como “quem tem pressa come cru” e “os últimos serão os primeiros” (este era meu preferido, afinal sou a última filha de oito irmãs e com o nome começando com a letra Z). Era assim, sem pressa e com persistência na escola, na execução das tarefas com antecedência pelo gosto de fazê-las devagar, na dança, no gosto pela Yoga ou no melhor potencial no atletismo nas provas de resistência do que nas de velocidade. E assim também tem sido o caminhar com a clínica psicanalítica, passo a passo, com persistência e resistência, num ritmo mais lento do que veloz.

Compartilho com vocês que tal ritmo na clínica muito me incomodou. As dificuldades encontradas na prática depois de tantos anos de análise, seminários, estudos, supervisões, tudo envolvendo bastante tempo e dinheiro, me pareciam indicadoras de uma espécie de atraso. Hoje me sinto auxiliada pelos referidos anos de muito trabalho e pelas dificuldades e tenho outra leitura deste processo. Ressalvada a obviedade das diferenças individuais, aposto no que a minha associação revela: ao menos nesta psicanálise que escolhi, a prática clínica se produz de fato lentamente, passo a passo. E, ao invés de problema, isso agora me parece, se não solução, ao menos condição. É passo a passo que vamos fazendo nosso caminho, abrindo nossa trilha.

Tuto, cito, jacundi, dizia Freud, na conferência 28 (1916-17), com a psicanálise não é possível que as coisas se deem de forma fácil, breve e com alegria, tanto do lado do analisante, quanto do analista. Portanto, creio ser necessário dispor de tranquilidade e paciência que permitam suportar os processos de produção de um analista, de construção de uma prática clínica e da condução de uma análise, os quais, além de morosos e trabalhosos são também intermináveis: um analista e sua clínica, assim como uma análise, jamais estarão definitivamente prontos e/ou acabados.

Pois bem, essa psicanálise que escolhi está longe de esperanças vãs de uma felicidade mágica, milagrosa ou química. Ela enfatiza a singularidade e o reconhecimento do sujeito e de sua implicação na vida que leva, sempre apontando para a responsabilização por aquilo que lhe sucede. Tal psicanálise afirma que um sujeito goza sofrendo e se esforça para manter essa situação até que ela se torne insuportável. Trata-se de um gozo paradoxal, que inibe, retira as energias, tolhe a liberdade e as perspectivas na vida, as quais se tornam limitadas e invadidas por fracassos.

Neste contexto, uma análise busca produzir alguma transformação, com a possibilidade de outras modalidades de gozo não tão sofredoras e/ou parasitárias. Harari (2008) diz que essa psicanálise visa produzir um pouco de liberdade em relação ao sintoma, para que se possa, como diz Freud, amar para além do seu sintoma como a si mesmo. Acho esta uma formulação muito interessante: que o gozo possa transcender aquele do sintoma, trabalhamos para que o sujeito possa transformar um gozo sintomático em outra coisa. A análise busca uma saída das inibições, dos fracassos, da fuga das responsabilidades, saída para tudo aquilo que impede uma passagem para o mundo, uma saída para aquilo que Freud chamava de introversão libidinal.

Saber fazer ali com, disse Lacan, com os mesmos elementos que compõe o sintoma e o sofrimento, fazer, produzir alguma outra coisa, transformar. Portanto, está em questão um agir no mundo e não apenas uma nova leitura interior, um insight. Poder se libertar um pouco do que parecia um destino, produzindo um estilo. Esta pode ser uma forma de se pensar o fim de análise. Bem, não dá para fazer isso rapidamente, tem que ser passo a passo.

Prosseguindo nas associações, passo a passo pode remeter a uma ordem fixa e necessária, geralmente graduada de uma menor para uma maior complexidade ou dificuldade, a ser seguida para que uma tarefa se complete. Uma sequência pré-estabelecida de passos a serem dados para alcançar um objetivo. Bem, o passo a passo aqui em questão não é bem assim. Acima fiz alusão à abertura de uma trilha, como quando andamos no mato e vamos abrindo o caminho. Emprestei esta metáfora de Isidoro Vegh (2013), ele a usa em seu livro Senderos del analisis, sendero é caminho, mas um caminho que se faz ao caminhar, como quando na abertura de uma trilha.

Acredito que com Lacan, aprendemos que não há como termos uma definição standard dos passos a darmos em nossa produção como analistas e o mesmo vale na condução de cada uma das análises que assumimos e, portanto, na construção de nossa prática clínica. Alguém poderia argumentar que há sim um primeiro passo no que tange à chamada formação de um analista, que seria chegar ao final de uma análise pessoal, afinal, sabemos que um final de análise produz um analista. E que o passo seguinte seria a entrada numa instituição, pois não é assim que Lacan enuncia, um analista se autoriza de si mesmo e de alguns outros? De acordo, mas quantos de nós começaram a prática clínica apenas após um final de análise? E quantos se jogaram numa escola após um final de análise? Creio que não ocorreu assim com a maioria de nós, é muito comum em nosso meio começarmos com a clínica bem antes de um final de análise, nem todos se envolvem em uma instituição e não considero que estes fatos nos desqualificam. Além do mais, podemos necessitar e decidir fazer outras voltas de análise, muito depois do final de uma primeira, não vejo nenhum mal nisso, e se houvesse esta ordem rígida dos passos, isso significaria que estaríamos regredindo, voltando passos atrás, ou que aquele primeiro final de análise não foi verdadeiro? Não penso que seja assim. Claro, existem passos necessários e fundamentais para a produção de um analista e de sua prática clínica, assim como para a condução de uma análise, mas não há como padronizá-los numa ordem obrigatória e essencialmente cronológica ou graduá-los do simples ao complexo.

E falando em simples e complexo, acompanho mais uma vez Isidoro Vegh (2013a) e agora também Tyszler (2011), ambos apresentam a formulação de que na psicanálise não partimos do simples para chegar ao complexo, ao contrário, o simples é o ponto de chegada. Uma chegada que se produz após muito trabalho em todos os sentidos: trabalho com os textos, trabalho com a clínica, trabalho de análise pessoal e de controle. Quando em nosso percurso vamos desenvolvendo e nos apropriando de uma determinada lógica que passa a operar em nossa prática, daí advém o simples, a lógica produz simplicidade e não complexidade. Simplicidade aqui rima com tranquilidade para suportar e acompanhar, sem pressa, o tempo, o ritmo, os passos de cada um de nossos analisantes.

A psicanálise como experiência da transferência e de sua manobra é uma operação lógica da qual o analista é a causa. Esta posição de analista não é nada confortável, Lacan (2000), em O saber do psicanalista, chega a dizer que é uma aberração que ao final de uma análise alguém se decida a trabalhar como analista, se decida a ocupar uma posição tão incômoda. O operador desejo do analista é um nome dessa aberração. A análise do analista precisa, portanto, produzir o operador desejo do analista para capacitá-lo a dirigir os tratamentos analíticos do começo ao fim da transferência. Neste sentido, acredito que um outro passo fundamental na produção de um analista é que ele possa desdobrar em sua análise pessoal a seguinte pregunta: por que quero trabalhar como analista? Por que esta aberração me concerne?

A expressão usada por Lacan, “passo o tempo passando o passe” (Vegh, 2013a) parece indicar, mais uma vez, o interminável da tarefa de produzir-se analista e, portanto, a inexistência de uma resposta única e definitiva para a pergunta que estabeleci acima. Acredito que esta pergunta deva ser renovada e retrabalhada ao longo de nosso caminhar, de nossos passos, como analistas e que, em diferentes momentos, esta aberração pode nos concerner por diferentes motivos. E mais, se não há uma condição ontológica em nossa função, se não somos analistas, apenas operamos como tal, ocupamos este lugar, a renovação de tal questão me parece mesmo necessária, pois, em algum momento pode ocorrer que esta aberração não me concerne mais e, consequentemente, o operador do desejo do analista não pode mais ser sustentado. Se podemos pensar a condição de analista como um sinthoma, ou seja, como algo que opera em nossa estrutura e aí tem uma função, é possível considerar que este sinthoma possa ser substituído por outro, que ele perca o valor e função que adquiriu na estrutura. Passos infindáveis, mas nem por isso, necessariamente, eternos.

Por fim, quero destacar a importância, para a prática clínica de cada um de nós, do passo que estamos dando aqui nestes dois dias de trabalho. Que o analista seja ao menos dois, diz Lacan, que ele possa, para além da sua clínica e das análises que conduz, trabalhar sobre sua prática e transmitir algo sobre ela. É o que fizemos, com entusiasmo, nesta Jornada. Muito obrigada pela companhia de vocês nesse passo.

Autora: Zeila Torezan
zeilatorezan@gmail.com

 

Referência Bibliográfica

Harari, Roberto. O Psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.

Lacan, Jacques. O saber do psicanalista (71-72). Recife: CEF, 2000.

Tyszler, Jean-Jacques. As metamorfoses do objeto. Clínica da pulsão, da fantasia e da letra. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2011.

Vegh, Isidoro. As intervenções do analista. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2001.

Vegh, Isidoro. Senderos del análisis. Progresiones y regresiones. Buenos Aires: Paidós, 2013.

Vegh, Isidoro. Paso a pase con Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2013a