Sexo, Sexualidade e Sexuação
A partir da tríade amor, desejo e gozo sobre a qual trabalhamos neste ano na ALPL, elegi como título do texto de conclusão de cartel uma nova tríade: sexo, sexualidade e sexuação. Pretendo fazer um breve percurso sobre cada uma das tríades a fim de produzir uma articulação entre ambas, focando na importância dessa relação para o processo de sexuação. Ao longo do estudo do seminário 20, destacou-se para mim a proposição de Lacan sobre o que ele denomina sexuação. Tal interesse foi ganhando corpo em função de questões encontradas na prática clínica, em especial nos mais variados impasses frente às posições de homem e de mulher. Por fim, o recorte mais preciso da temática e a escolha do título se deram a partir de uma interlocução com a psicanalista argentina Alba Flesler.
AMOR, DESEJO E GOZO
Quando, seguindo Lacan, localizamos amor, desejo e gozo na cadeia borromeana, fica estabelecido que eles sofrem os efeitos das propriedades desta estrutura. Com a cadeia borromeana, real, simbólico e imaginário passam a ter o mesmo valor e operam de forma enlaçada e de maneira que essas dimensões fazem limites entre si. Portanto, ao situarmos a tríade em questão nessa estrutura borromeana, está proposto pensar amor, desejo e gozo também de forma enlaçada; não considerar uma hierarquia ou ordem valorativa entre eles e também reconhecer que cada um desses campos faz limite, faz borda aos demais. Com a cadeia borromeana, sabemos que quando uma dimensão não se delimita bem em relação à outra, temos excessos, invasões de um registro sobre o outro e, consequentemente, as nossas conhecidas manifestações clínicas. Seguindo a mesma lógica operatória, uma vez que amor, desejo e gozo estão localizados na estrutura borromeana, podemos ter falhas na delimitação de seus campos com a produção de excessos e invasões que ocasionem efeitos, digamos, de um certo descompasso ou um maior desarranjo entre os três campos, com consequências desagradáveis e complicadas. Vejamos alguns exemplos.
Certa vez uma mulher disse com toda a sinceridade e sem metáforas que havia pensado em congelar seu bebê, pois não sabia como fazê-lo parar de chorar. Era atormentada pelo medo de que a criança morresse e alternava tempos de cuidados maciços e excessivos com esquecimentos e descuidos. Poucos anos depois a criança morreu com um diagnóstico impreciso. O apetite devorador do gozo em cena dirigido à criança não pode ser freado pelo amor e/ou pelo desejo.
Não é raro ouvir jovens dizerem-se sem gosto por nada, muitas vezes deslizam metonimicamente da uma escolha de curso a outra, de um ficante a outro, de um estilo a outro, de uma droga a outra. Outras vezes, talvez para se defenderem da corrida desenfreada do desejo, sofrem de intensa inibição e apatia. Seus pais, ainda que amorosos e liberais (talvez permissivos), são tidos por esses jovenzinhos como distantes e não interessados por eles. Façam o que fizerem, acreditam não haver satisfação por parte dos pais, parece não haver quantum de gozo ou de amor suficientes para enlaçar o desejo de forma a refreá-lo.
Meu filho é tudo para mim; foi sempre tudo muito: muito amor, muita proteção; sempre foi uma criança frágil; eu só tenho minha filha na vida…
Essas e outras frases estão, com frequência, na fala de mães de crianças e adolescentes, nem sempre no sentido cronológico do termo, às vezes no sentido lógico também. Não é raro receber telefonemas de mães de jovens adultos para agendar horário para eles, momento em que falam algumas frases como as citadas. Uma delas chegou a ir pessoalmente ao meu consultório, para me conhecer, antes que o filho de mais de 20 anos fosse se consultar. Tudo isso por amor. Muito amor, só por amor. Sabemos como o amor como um fim em si mesmo é mortífero. Em geral, estes jovens se apresentam tímidos, desnorteados, dependentes, um tanto deprimidos e inibidos, atormentados com a sexualidade e incapazes de realizar escolhas e tomar decisões.
Feita a leitura sobre a primeira tríade, passo a alguns comentários sobre a segunda, e seguindo a indicação que Alba Flesler me deu na referida interlocução, destaco a importância de diferenciarmos e, ao mesmo tempo, relacionarmos sexo, sexualidade e sexuação. Sim, é necessário considerar os três termos e mesmo a relação entre eles, o conceito de sexuação estabelecido por Lacan não nega a existência, a importância e os efeitos do sexo e da sexualidade. E, na medida em que delineamos as diferenças e a relações entre tais termos, nos deparamos com a importância do enlace de amor, desejo e gozo no casal parental e em suas funções materna e paterna para o processo da sexuação.
O SEXO
O sexo é biológico, não há como desconhecer que nascemos portadores de um sexo anatômico, que mesmo não sendo o destino, não é sem consequências em nossa existência. As expectativas dos pais para o nascimento de uma criança certamente incluem o imaginário sobre seu sexo anatômico e junto com ele há uma série definições pré-estabelecidas por serem associadas àquele sexo: o nome próprio, as roupas, acessórios, brinquedos, cores e decoração do quarto, os comportamentos e desenvolvimento esperados(meninas são mais calmas, delicadas e afetuosas, os meninos mais agitados, arteiros e independentes; as meninas falam e andam mais cedo; meninos gostam de matemática e as meninas de português). Portanto, não é tão simples quando todo esse imaginário é construído para um sexo e é o outro que aparece no exame de ultrassom ou na nascimento da criança. Era uma vez um casal que esperava o nascimento de seu primogênito, nasceu uma menina que recebeu o nome de Sidiney. Ela tornou-se freira e adotou um nome feminino, nome de uma santa pouco conhecida e que em sua origem latina significa gozo, prazer, júbilo. Insisto, o sexo com o qual nascemos, o sexo biológico não é para nós o destino, ele não sela ou define uma posição de homem ou de mulher, mas está implicado no processo de produção dessas posições.
A SEXUALIDADE
Portanto, não sendo o sexo o destino, a sexualidade não é determinada pelas gônadas sexuais. A sexualidade vai se imprimindo num corpo que porta um sexo e é tomado pelo Outro como objeto de amor, de desejo e de gozo. Trata-se da erotização do Outro sobre esse corpo que porta um sexo. À medida que a criança é tomada alternativamente como tampão e como causa da falta no Outro, o tempo pode passar para que ela chegue ao que Freud chama de primeiro despertar sexual, quando é necessário que caia o véu da inteireza materna, um tempo provocador de angústia pelo abalo do imaginário de ser o falo da mamãe, e tempo prévio à possibilidade de não mais ser o falo, mas de poder tê-lo.
Mais à frente, é necessário haver por parte dos pais o reconhecimento e a autorização para crescer e se apropriar de um saber sobre seu sexo e sobre a sexualidade. No denominado segundo despertar sexual, o real do sexo e da diferença sexual é colocado em cena novamente, se deparar com o outro e seu corpo é agora um fato concreto, nem sempre fácil de abordar. Assim, esse tempo se caracteriza como um novo momento de angústia, agora também frente à sexuação, à redistribuição dos gozos, inclusive para que haja o enlace entre amor, desejo e gozo e ao encontro com o outro.
Havia uma mocinha muito curiosa e fascinada pelo funcionamento do corpo (o cérebro, os genes, os hormônios), e seu corpo correspondia a esse interesse de forma dolorosa: cólicas menstruais excessivas, dores de estômago, insônia, alergias e manchas na pele. Um dia, ela me perguntou: “você que é psicanalista, me diga, a sexualidade é assim tão importante nas nossas vidas?” Na verdade ela não demonstrava dúvidas quanto a isso, o difícil estava em como responder à importância da sexualidade e da sexuação.
Observo que o corpo portador de um sexo torna-se também um corpo da sexualidade e pode haver aí um desencontro entre o esperado para o sexo anatômico, os chamados da sexualidade e a posição sexuada. De qualquer forma, a sexualidade não é sem o sexo e ambos estão implicados na sexuação.
A SEXUAÇÃO
Dizer que a sexuação é um fato de discurso e não é determinada pelo sexo anatômico, mas não é sem a sexualidade, indica a implicação e a importância desta última na sexuação e, portanto, nos remete ao operador fálico como central nesta concepção. Sobre esse ponto destaco um posicionamento de Alba Flesler (2010). Com uma prática clínica extensa com crianças e adolescentes, a autora atribui relevância ao desejo entre o casal parental e seus efeitos sobre o sujeito. Não é sem consequências para as funções materna e paterna o que se passa entre a mulher e o homem, ou seja, entre o casal parental.
Nesta direção, não é vã a afirmação de Lacan: um pai merece amor e respeito quando toma sua mulher no lugar de causa de seu desejo. Assim, ele pode exercer sua função de nominação e colocar as coisas em seus devidos lugares: nomeia-se como pai, nomeia aquela como sua mulher e a criança como seu filho. Para que os tempos passem, a criança cresça, a função fálica e a falta se inscrevam é necessário que os pais possam relançar suas apostas e contribuir para que novas perdas de gozo se dêem. Para nós, parlêtres, não há ganhos sem perdas. E esse jogo do quem perde, ganha, está atrelado ao lugar que a criança ocupa para os pais, à maneira como ela é tomada pelo amor, pelo desejo e pelo gozo dos pais e também pelos efeitos do enlace de amor, desejo e gozo no casal.
Acima observei que o operador fálico é central ao conceito de sexuação, pois bem, na leitura de Lacan, dizer-se homem ou mulher indica a existência de duas diferentes modalidades de gozo a partir da lógica fálica. A sexuação trata, portanto, de uma divisão entre os seres falantes em relação a dois modos de gozo e não em relação ao sexo anatômico. Lacan (1985) reune suas elaborações acerca da diferença entre homem e mulher em fórmulas matematizadas, conhecidas como as fórmulas quânticas da sexuação.
A leitura desse quadro e suas fórmulas indica que do lado homem para todos se cumprem a função fálica, mas isso só pode ocorrer porque existe ao menos um que escapou a ela, ao menos um diz não à castração, a exceção faz a regra e permite o fechamento do conjunto. Por sua vez, do lado mulher não há exceção que possa fazer regra ou conjunto. Toda mulher está submetida à lógica fálica e como não há uma que escape, essa lógica não funciona por completo, a mulher está “não-toda” na lógica fálica. Então, a lógica fálica não recobre totalmente o que é ser mulher, como recobre o que é ser homem. Isso permite que deste lado se vá mais além da lógica fálica, num mais-além do gozo fálico. Desse lado não há conjunto que se feche e não todo do sujeito está submetido à lógica fálica, todo sujeito, porém, não todo de cada sujeito. Aqui nos deparamos com o aforismo a mulher não existe, no sentido de que não existe um significante que a diga, que a defina por inteiro, e não há um conjunto das mulheres.
Enfatizo como a função fálica é central à sexuação, o falo simbólico introduz a lógica da incompletude, possibilitando haver também um gozo além do fálico. E como vimos acima, para que a inscrição fálica se dê, para que a falta opere, há todo um processo de sexualização do vivente que depende, entre outras coisas, de como a criança é tomada pelos pais no enlace de amor, desejo e gozo. A sexuação se associa à nossa condição fundamental de parlêtre, e por sermos seres de fala não há mais uma relação direta e completa com as coisas, o atravessamento da linguagem produz um rombo, um buraco estrutural em nossa existência. Mas, para que esse buraco estrutural seja elevado ao estatuto de falta, e o desejo possa advir, as funções de antecipação materna e de nominação paterna são fundamentais. Retomo e ressalto a importância da nominação nesse processo, é através da nominação que o pai interdita o gozo incestuoso afim de que novos gozos possam ser autorizados, inclusive aquele que tange à sexualidade e à autorização de uma posição sexuada.
O conceito de sexuação também permite concluir que não há para nós relação, proporção, no sentido lógico do termo entre os sexos. Não há acoplamento, não há adequação, não há encaixe perfeito entre os sexos de forma a produzir a anulação de dois e, portanto, da diferença. Então, duas posições sexuadas, dois modos de gozo: o gozo fálico do lado do homem e o mais além do gozo fálico do lado da mulher. Mas para chegarmos aí e podermos nos autorizar homem ou mulher, é necessário que sejamos tomados alternadamente no lugar de gozo e de significação fálica (e, para tanto, amor e desejo devem estar presentes), é necessário o enlace de amor, de desejo e de gozo para que de um sexo se chegue à sexuação, através da sexualidade.
Autora: Zeila Torezan
Referência Bibliográfica
Flesler, Alba. El niño en análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Paidós, 2010.
Lacan, Jacques. O Seminário: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.