SOFRIMENTO, MORTE, PSICANÁLISE E ARTE NA PANDEMIA: UM TRATAMENTO PARA A ANGÚSTIA

 “A gente não pensa na morte. Até que ela nos pega” (Matheus Nachtergaele em “Desconserto”).

 

Durante o período da pandemia, assisti o monólogo de Matheus Nachtergaele, intitulado “Desconserto”, onde ele faz uma releitura de sua peça “Processo de Conscerto do Desejo”. Ele trabalha com os escritos de sua mãe, que se suicidou quando ele ainda era um bebê (Maria Cecília se suicidou aos 22 anos quando Matheus tinha três meses).

Neste período de pandemia, em que estamos vivendo a experiência da morte de forma tão próxima, me impactou demais tanto o espetáculo quanto o processo de criação de Matheus. Eu já havia ficado impactada na primeira vez em que a assisti a peça “Processo de Conscerto do Desejo”, ao vivo, no teatro Marista, aqui em Londrina, num Filo de uns três anos atrás. Desta vez assisti há cerca de uns três meses, de forma virtual, pelo canal do sesc.

Sendo sua mãe dramaturga, Matheus, se apoia nos fragmentos dos escritos deixados por ela, nas histórias que seu pai lhe contava, nas músicas que ela gostava de ouvir, nos objetos de que ela gostava; para dar vida a ela. Ao longo da peça ele diz que quis “construir uma imagem da mãe”. Dá pra imaginar o que é pra qualquer um de nós perder a mãe sendo um bebê tão pequeno, e de forma tão violenta? Que lembrança ele poderia ter dela? E mais, que mensagem ele recebeu dessa mãe sobre quem é ele próprio? Matheus conta que isso o marcou ao longo de toda vida, e que a peça foi justamente uma forma de lidar com esse luto da mãe.

Com o que ficou após a morte dela, ele dá contorno, fantasmariza a mãe, construindo uma resposta às suas perguntas: “mãe por que você me abandonou? Por que você se matou?” Em Psicanálise, “Che voi?”, o que desejas de mim? Na pergunta da criança desvela-se a necessidade de um Outro que a reconheça para justificar a sua existência. Lacan nos lembra que o Outro é o lugar do significante, ou seja, retomando o estádio do espelho, a criança, ao reconhecer, jubilatoriamente, a própria imagem no espelho, volta-se para o adulto que a segura, em busca da confirmação “tu és”. A criança se identifica com essa imagem, e esta é assegurada pela mãe, que lhe diz que aquela ali é ela. A criança se vê então a partir do olhar desejante da mãe.

O Estadio do Espelho lacaniano (1949/1998) nos diz que a subjetividade do humano nasce a partir do desejo do Outro. Segundo a teoria freudiana, o nascimento de um filho implica para os pais na possibilidade de uma restituição narcísica. Para o bebê, estar colocado antecipadamente nesse lugar, na fantasmática parental, permite a ele não somente sua sobrevivência biológica, mas também uma inserção no mundo humano, a partir de seu enlace a esse desejo parental. O bebê humano, diferente dos animais, que possuem um modo único e determinado de realizar as funções para sua sobrevivência, nasce biologicamente imaturo, incapaz de dar conta de cuidar de si e de entender sozinho o que se passa a sua volta e em seu próprio corpo. Ao puro grito do bebê, decorrente de um incômodo gerado por um excesso de excitação, é necessário que uma mãe o tome como um apelo, respondendo não apenas com a eliminação dessa excitação, mas pondo palavras nisso que era do biológico. Dessa forma, a partir do encontro com o Outro, começa a se inscrever na criança um outro registro, que produz uma marca a partir de uma experiência de satisfação. A relação com a mãe possibilita uma antecipação de uma unificação do corpo do bebê e a precipitação de um eu.

Ao longo de seu monólogo, Matheus conserta, com s, o próprio desejo: o luto permanente de sua mãe, em suas próprias palavras, em uma entrevista sobre a peça: “esse abandono, esses caguetes que carrego, eu queria deixar na peça, e a partir daí ver o que eu quero”. Ele resgata as vivências dessa mulher, a tristeza permanente que ela carrega, as pequenas alegrias, a tentativa de buscar saídas, e o empuxo à morte. Freud pontua que estar enlutado implica em identificar-se com o objeto perdido. Matheus, um bebê abandonado, cujo primeiro espelho lhe refletiu a imagem de desesperança e tristeza, (quem sabe desespero?).

Porém, nos escritos da mãe, ao falar dele, a mãe diz que o desmamou, que ele passa a se interessar em brincar com o sininho, e faz recomendações de cuidados com ele. Ele reconhece nisso que ela o separou dela antes de ir para a morte. Desta forma, ele encontra uma mãe que o separa de si e o abandona para ser cuidado por outros que pudessem fazê-lo. A partir dos significantes do Outro ele constrói a sua narrativa, uma interpretação acerca de sua própria história e de seu lugar no desejo do Outro.

Da fala de Matheus sobre o processo de criação da peça, não consigo deixar de pensar no processo do conscerto do desejo com uma a analogia ao processo de análise, onde acompanhamos Matheus da angústia ao desejo. Para falar da angústia, Lacan (1962-63) traz a imagem de estarmos diante de um louva-deus gigante travestidos de algo que nós próprios desconhecemos. Nesta situação não sabemos que objeto somos diante do desejo do Outro, correndo o risco de sermos um objeto apetecente aos olhos dele, podendo então ser devorados. Ele traz, retomando o grafo do desejo, na relação do sujeito com o significante (do Outro), a pergunta que se coloca “che voi?”, desdobrando em “o que ele quer comigo?” e “como me quer ele?”

 

Fazendo referência à situação vivenciada por todos nós neste momento, e que nos tem posto em angústia, podemos desdobrar algumas perguntas: o que esse vírus quer comigo? Serei do grupo de risco? Vou morrer? Como pagarei minhas contas? Poderei trabalhar? O que faço com meus filhos? Quero este marido? Lacan diz que a angústia é sinal do real. O real, para Lacan, seria o que nos coloca diante da castração, ou seja, da falta. Diante da falta no Outro, o sujeito responde com a própria falta, em outras palavras, frente ao encontro com o Real, o sujeito responde como objeto, e isso causa angústia.

Diante disso, o que faz uma psicanálise? A ideia de que é possível o preenchimento da falta, por meio de algum objeto, é consequente de uma outra, a de que falta é algo a ser corrigido. Por meio das intervenções, o analista visa possibilita surgir o lugar da falta como não tamponável. Assim possibilita ao analisando perceber-se nas relações que o configuraram enquanto sujeito na vida, e que posição tomou diante delas. Isso possibilita a passagem da angústia ao desejo.

Trago uma citação de Lacan (1974), que tem sido bastante utilizada nesses tempos, ouvi em lives de Colette Soler e Marcelo Veras a lembrança: “A Psicanálise é o pulmão artificial, graças ao qual tentamos assegurar o que precisamos encontrar de gozo no falar para que a história continue”. À ocasião ele diz da psicanálise como um discurso avesso ao discurso da ciência.[1] O que estes psicanalistas destacam, e eu, no ensejo deles, é o que pode a psicanálise diante disso que estamos vivendo? Sim, é inegável a importância da ciência neste momento, ela é que nos tirará da condição de perda sem perspectiva de fim que estamos vivendo. Porém, penso que tão importante quanto assegurar a vida, é possibilitar continuar vivendo, num mundo que não é mais o mesmo. “…encontrar de gozo no falar para que a história continue”. Eu troquei, sem querer, história por “vida”. Acho que, realmente acredito, que a psicanálise, assim como a arte, de Matheus, é o que possibilita que a vida continue.

Me lembrei de uma outra coisa que assisti durante a pandemia que é o episódio de um programa do Gregório Didivier, chamado “Leveza”, onde ele trata exatamente disso. Ele diz que uma das coisas que tem ajudado as pessoas a ficarem leves nesse período de pandemia, a enfrentar a solidão, a separação, a ansiedade, o medo, são produtos da cabeça dos artistas: “a série que eu estou vendo, o livro que eu estou lendo, as músicas que eu ouço todo dia de manhã, as lives da Tereza Cristina…”.

E o mais interessante é a leitura que ele faz sobre a função da arte, ele diz que ela não vem no sentido de desviar a atenção da morte, do sofrimento e de tudo o que estamos vivendo, é justamente o oposto. Ele defende a tese de que arte é principalmente sobre morte, seja pra lembrar que muita gente já morreu, seja pra lembrar que você vai morrer. Ele cita uma expressão em latim Memento mori, muito utilizada em uma determinada época: “lembre que você vai morrer”. E daí ele começa a desdobrar filósofos, escritores, roteiristas, compositores, pintores que tratam sobre a morte e o morrer ao longo de toda a História.

Ele diz que além de ajudar a gente a lidar com a morte, a arte possibilita processar a morte coletivamente. Não falar sobre a morte é ficar refém da morte. A arte é a memória viva em movimento, e ao falar da morte de alguém, a gente impede que a morte encerre a vida da pessoa. A arte é um jeito que a humanidade inventou de superar a morte e valorizar a vida.

Voltando ao “Processo de Conscerto sobre o Desejo”, entendo que Matheus, com música, poesia e muita sensibilidade, ele faz um concerto, com c, uma obra de arte, uma celebração do que foi possível, frente ao inexplicável, destila o ressentimento, a dor, a raiva, o medo, o amor. Assim, atuando a peça de sua mãe, ele se torna obra dela, respondendo a que veio ao mundo. Para ele, que se reconhece como um ator de teatro, “O teatro é uma prática que deriva de emoções”. Matheus cria uma obra que nos emociona, nos arrebata, nos implica, nos instrumentaliza para lidar com nossos próprios ressentimento, dor, raiva, medo e amor. Ou seja, deixa de ser dele, o ultrapassa e cumpre sua função de obra de arte. Matheus nos desconcerta.

 

REFERÊNCIAS

LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96- 103.

 

LACAN, J. (1962-63).O seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

LACAN, Le Coq-Héron, 1974, nº 46/47, p. 3-8 – Declaration à France Culture.

 

[1] discurso do mestre.