O Sujeito do Desejo na Clínica Lacaniana 1

Primeiramente gostaria de agradecer a presença das pessoas que vieram aqui participar desse momento especial, que é de comemoração e não de inauguração, uma vez que já iniciamos, há algum tempo, os nossos trabalhos. Para comemorar, nada mais especial do que chamar a Zeila para participar deste momento, pois, para mim, é uma mestra, mestra que inaugurou a série de outros mestres que sobrevieram através de textos ou pessoalmente. E comemorar em companhia de pessoas que tenho tamanho apreço é muito importante; com quem estou junto desde o começo e outros que fui encontrando durante o meu percurso. Hoje, então, vamos comemorar trabalhando. A Marana e eu pensamos em trabalhar com a temática que já estamos trabalhando este ano que é: Amor, Desejo e Gozo. Portanto, vou apresentar minha parte, que é a do desejo.

Esta apresentação, visa lembrar, que não se trata de um seminário. Não tenho essa audaciosa pretensão. Ao invés disso, o que pretendo fazer é compartilhar e discutir algumas ideias que foram se forjando a partir de um trabalho que fiz ano passado sobre a temática da repetição, inconsciente e desejo. Todas essas discussões têm como pano de fundo o Seminário 11, a que se conjugam outros textos de Lacan. Pois bem, é isso que gostaria de discutir hoje com vocês. Vale lembrar que como estamos entre camaradas, de forma geral, penso que seria mais divertido se deixássemos as formalidades de lado e participássemos sem encanação.

Para disparar nossa discussão, que é sobre o desejo, faço a seguinte afirmação: o que Freud falou sobre desejo em sua obra tem muito pouco a ver com o que Lacan começa a desenvolver sobre o desejo, pelo menos naquilo que vejo no seminário 10 e se formaliza no seminário 11. Não posso dizer nada sobre os seminário anteriores pois os desconheço, mas me apoio em comentadores que afirmam que o desejo, antes da década de 60, ia mais no sentido hegeliano do termo, que é o desejo de reconhecimento. Ao falar isso, gostaria que não pensassem que faço um corte duro em torno dessas viradas epistemológicas da obra do Lacan. Ao contrário disso, começo a perceber que existem alguns fios que amarram as ideias e teorizações que Lacan foi desenvolvendo ao longo de sua vida. Talvez daqui alguns muitos anos eu consiga enxergar alguns desses fios.

Se Lacan está, de alguma forma, propondo uma virada na sua própria concepção de desejo, inconsciente e repetição, e propõe, declaradamente, uma diferença com o que Freud desenvolveu sobre o conceito de inconsciente, temos que nos esforçar para tentar entender qual é essa diferença. Penso que são, fundamentalmente, duas:

  1. O ics lacaniano é pontual e surge entre significantes em condição transferencial; e não abriga memórias cujo conteúdo é a perversão polimórfico perversa reprimida pela cultura. Não há memórias no ics lacaniano, não há desejos perversos ou de qualquer outra ordem.
  2. Lacan ao afirmar que a existência do ics depende da presença do analista propõe pensar a operação da análise calcada em outro plano, em outra dimensão. Cabe a nós fazermos um esforço para pescar as dicas que Lacan dá em sua obra sobre qual é essa dimensão. Já lhes adianto que vai utilizar o campo da física e matemática para isso. Vou trabalhar sobre estes dois pontos, mas, como disse anteriormente, não no sentido de um seminário, mas de convidá-los para uma conversa e ver onde isso pode dar.

Vou abordar o primeiro ponto que levantei. Ao contrário do que Freud acreditava, que podemos vislumbrar no trabalho sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, o ics lacaniano não é algo que possa existir fora da transferência. O ics lancaniano não é, também, esse modelo hidráulico proposto por Freud na Interpretação dos Sonhos, que abriga memórias cujo conteúdo são os elementos perversos polimórficos que são interditados pela cultura. Assim, para Lacan, não há um conteúdo no ics, não há o que temer do conteúdo ics, não há desejos no ics. O ics lacaniano não é, mas está.

O ics lacaniano opera segundo um princípio muito particular, que é a repetição-tychê. Portanto, só podemos apreender o ics quando está dentro de uma estrutura espaço-temporal delimitada por dois significantes: S1 e S2. Quando essa estrutura espaço-temporal surge dentro da análise é aí que o sujeito do desejo aparece. É o momento em que a estrutura do Outro se revela faltante (A/) e o seu objeto fálico, que comumente associamos ao bebê, cai de sua posição idealizada e investida libidinalmente. É o que Lacan pontuou como o momento da Separação, precedido pelo movimento de Alienação, onde se produz uma parte não simbolizada; resto permanente, duro, indivisível, do processo de divisão do sujeito; portanto, vertente real do objeto ‘a’. É a estrutura do desejo do Outro que se revela em sua vertente mais enigmática, aparição do sujeito desalienado da  demanda do Outro, ponto no qual carece de qualquer resposta pronta ao que supostamente falta ao Outro. Onde ocorre uma vacilação do saber e um desvelamento da verdade. Saber do quê? Saber sobre como responder ao que o Outro supostamente demanda – estrutura do fantasma vacila neste momento.

Nesta mesma via, gostaria de compartilhar algo com vocês. Se vocês voltarem ou irem para o Seminário 11, perceberão que as operações de Alienação e Separação não estão no começo do seminário, mas no fim. Coisa muito estranha e que não deve passar despercebida aos nossos olhos, uma vez que é justamente sobre o não-evidente que devemos nos atentar. É isso que a própria psicanálise nos ensina. Então me fiz a seguinte pergunta: por que esse tema não está no começo, mas no fim?Porque seria muito mais fácil se Lacan tivesse falado da estruturação do sujeito, da constituição do psiquismo das pessoas, a partir do vél da alienação e da teoria dos conjuntos para depois explicar o funcionamento do ics a partir da lógica da repetição. Falar de como as pessoas/sujeitos se constituem e formam seu psiquismo para depois falar em como operar em análise seria o procedimento mais lógico, mais coerente. Mas ele não faz assim. Então por quê?

A minha hipótese é que quando Lacan vai trabalhar o seminário 11 e vai formalizar essa ideia do sujeito do desejo entre significantes, ao abordar o vél da alienação ele não está falando de como as pessoas formam seu psiquismo ou de como ocorre a relação entre o bebê e sua mãe /cuidador e pai. Penso que ao invés disso ele está tentando formalizar uma estrutura que fundamente a sua proposta da repetição como um princípio do ics e que marca esse projeto de diferenciar o seu ics do ics freudiano.

Quando passei a entender o vél da alienação dessa forma, passei a compartilhar da mesma ideia de Aurélio de que a clínica do bebê é uma prática de extensão da psicanálise e não em intensão, pois fazemos uma correlação direta entre pais, os professores e a instituição escolar com o Outro, com o propósito de promover uma ortopedia da constituição do sujeito. Fazemos ontologia ao articularmos dessa forma. O sujeito, que só pode ser definido pelo verbo estar, nestes casos passa a ser definido pelo verbo ser. Isto, a meu ver, não é o que está propondo neste momento.

Vejamos o que Lacan diz em Ciência e a Verdade, texto que está nos Escritos, mas que é a primeira lição do seminário 12, portanto logo após de trabalhar com o vél da alienação: “Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação […] de encarnar ainda mais o sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta” (p. 873). Nesta passagem ele estava justamente discutindo  sobre qual sujeito que operamos em análise. Desta maneira, o vél da alienação trata apenas do sujeito do desejo, do ics lacaniano, e não de um sujeito encarnado, isto é, de carne e osso. O vél da alienação ganha seu valor se pensarmos o sujeito definido pelo verbo estar e não pelo ser.

A repetição-tychê, que é produto da manobra do analista, aponta para esse momento de constituição do sujeito do desejo resultado da Separação. Divisão aguda entre saber e verdade, o que possibilita ao analisante se encontrar com a verdade de seu desejo – que é o furo, o Outro faltante (A/) – e assim algo de sua estrutura poder ser tocada, reescrita.

Pois bem, a partir disso surge a seguinte questão: se o que ele propõe desde o seminário 11, e continua nos seminários seguintes, não versa sobre o sujeito encarnado (pessoas de carne e osso), do que ele está falando quando fala da psicanálise em intensão?

É justamente aqui que adentro no meu segundo ponto que eu interrogava justamente qual é a dimensão do sujeito do ics se não deve ser representada pela pessoa de carne e osso. Lacan, no seminário 11, no momento em que está desenvolvendo seu conceito de ics, cita, em todas as lições, nomes de matemáticos e de Newton. A este último, especialmente, faz uma crítica à sua teoria da mecânica e começa a afirmar que a sua psicanálise em intensão deve ser reduzida a uma matemática que se debruça sobre o estudo de superfície, portanto a topologia. Este é um campo da matemática muito utilizado na mecânica quântica e na teoria da relatividade. Portanto, Lacan lia e estudava a filosofia da física, o que começo a acreditar que pesou bastante para se pensar, inclusive, a sua categoria de real.

Então qual é a dimensão do sujeito do ics de Lacan? É alguma dimensão definida pela física? Pela matemática? Penso que também não, apesar de que esses dois campos ajudam a pensar a dimensão do sujeito da psicanálise. Faz, pelo menos para mim, com que fique mais palpável a ideia de que existe uma estrutura do sujeito (tema que nos ocupamos no ano passado) que tem uma realidade paralela ao sujeito encarnado, mas que o afeta constantemente. Assim como existe uma 4ª dimensão que é definida pela mecânica quântica e interfere diretamente em nossa existência concreta e encarnada, existe, para a psicanálise, uma Outra dimensão, que podemos chamar de topológica, portanto de duas dimensões, que emerge na análise e sobre o qual o analista deve operar.

A intervenção do analista recai sobre essa superfície topológica. Autorizado pela transferência, as palavras, os sons, as letras que saem da boca do paciente devem ser tomadas como elementos que dão consistência a essa Outra dimensão e constitui essa superfície topológica que  possibilita o trabalho do analista. Neste caso do sujeito do desejo, estou fazendo referência à banda de moebius. Lacan fala o seminário 11 inteiro, de forma muitas vezes implícita, sobre a banda de moebiu e continua no seminário 12.

Vejam por exemplo, quando Lacan fala em mau-encontro da Tychê, de corte, ou mesmo a celebre frase: ali onde se estava, deve o sujeito advir. Vejam que nestes termos, mas sobretudo nesta última expressão, está em jogo essa formalização dessa dimensão espaço-temporal delimitada entre dois elementos, que podemos pensar S1 e S2.. Penso que estas coisas devem ser pensadas na banda de moebius. Todas essas expressões fazem alusão ao momento de aparição do sujeito do desejo, momento este que corresponde ao momento, preciso, em que o último corte sobre a banda se encontra com o primeiro corte, fazendo com que seja aberta. É neste momento de abertura (vejam que este termo também é utilizado por Lacan) da banda que se produz uma divisão experimentada entre saber e verdade, e que a partir daí pode acontecer uma mudança na estrutura do sujeito, que pode ou não afetar o sujeito encarnado.

Operamos sobre essa estrutura da topologia lacaniana, na certeza de que isso afetará o sujeito. Certeza que extraímos de nossa própria análise e dos estranhos efeitos que colhemos do processo analítico. Não há outra maneira de acreditarmos em nosso fazer analítico, que é totalmente insano, como espero ter demonstrado aqui, que não seja passando pela experiência.

 

Autor: Edinei Hideki Suzuki

 

1Texto apresentado num evento comemorativo.

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