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Textos Jornadas de Cartel

A Tolice como Ética da Psicanálise

por Edinei Suzuki

Antes de iniciar, efetivamente, quero adverti-los de que esse trabalho tem, a meu ver, uma dificuldade de apreensão, já que é uma tentativa de “imaginarizar o real do simbólico”: que é o nó borromeu.  E espero que, a despeito dessa dificuldade, eu possa transmitir a satisfação que tive em trabalhar esse seminário. Lembrando, também, que é um momento importante na obra de Lacan, na medida em que começa a trabalhar com muito afinco a questão da cadeia borromeana.

Na sequência, gostaria de parabenizar a comissão organizadora dessa Jornada pelo empenho e dedicação em estruturar esse espaço, hoje virtual, para nos encontrarmos. Um espaço que nos é cada vez mais (in)familiar, desde que a pandemia do covid-19 teve início.

Não é por acaso que faço menção ao termo “espaço”, já que no seminário 21 essa questão é levantada para demarcar um ponto importante: o espaço do ser de fala, que é o espaço onde se escreve a cadeia borromeana.

Desde a época em que se dedicou a trabalhar com a topologia de superfície (toro, banda de moebius, cross-cap, garrafa de Klein) há um empenho, por parte de Lacan, em delimitar um espaço Outro onde se desenrola a análise, que não seria esse da realidade material e concreta; chamada por ele mesmo de tridimensional. No seminário 21, em que se pauta meu texto, é evidente uma insistência de Lacan em escrever o nó, planifica-lo. Observem as figuras a seguir:


 Nó 3 Dimensões: Vermelho: altura / Verde: profundidade / Azul: largura


 Nó 2 Dimensões: A noção de profundidade se perde, resultando na planificação do nó.

Mas por que essa operação de escrita do nó é importante?

Porque assim conseguimos 3 coisas:  1) identificar uma orientação do nó (sentido horário e anti-horário) 2) determinar uma ordem e 3) produzir o lugar do sujeito.

Observe na FIGURA 1 acima, se considerarmos que o vermelho é o Real, o verde Imaginário e o azul Simbólico, teremos na a seguinte ordem, determinada pela sobreposição das cordas: Real passando por cima do Imaginário e Imaginário passando por cima do Simbólico (RIS). Imaginário passando por cima do Simbólico e o Simbólico passando por cima do Real (ISR). Por fim, Simbólico passando por cima do Real e Real passando por cima do Imaginário (SRI). Mas sua orientação ainda não está definida, pois não sabemos se é dextrogiro (horário) ou levogiro (anti-horário). Posso, também, com algumas manobras sobre as cordas, alterar a ordem estabelecida no nó borromeu tridimensional visto logo acima para RSI, SIR; IRS. Se eu faço a planificação, isto é, a escrita do nó, da forma como sugere a figura 4, vou obter uma ordem e uma orientação. A planificação foi feita da seguinte forma:

            

Figura 3                                              Figura 4                                       Figura 5 

...puxo para frente o Imaginário (verde) e o deito para minha esquerda, no que resultará na terceira figura. Apenas olhando para os pontos de cruzamento das cordas e suas sobreposições, eu sei que se trata de um nó borromeano cuja ordem é RSI; SIR; IRS de orientação dextrogira (sentido do relógio). Logo, de um nó RIS tridimensional sem orientação (figura 1), consegui, na planificação/escrita, um nó borromeu RSI dextrogiro. Por outro lado, é possível manter a ordem do nó borromeu tridimensional da figura 1 (RIS; ISR; SRI) e mudar a orientação, passando de dextrogiro para levogiro (anti-horário). Para isso, basta mudar o lado que a corda verde vai cair. No caso anterior, da figura 4, puxei a corda verde para frente e depois deitei para a esquerda. Em vez disso, é só deitar a corda verde para a direita. Se ainda quisermos fazer outra operação para  manter a ordem inicial (RIS; ISR; SRI) e mudarmos a orientação, basta empurrar para trás a corda verde e dar o tombo. Ao empurrar, em vez de puxar, vou manter a ordem e oscilará na orientação a depender de qual lado se dá o tombo da corda verde. Para a esquerda se torna levogiro e para a direita dextrogiro. Como sei disso? Porque eu fui lá e testei essas possibilidade de escrita.

O que discorri consiste em entender as possibilidades de se manipular o nó, bem como de alterá-lo tanto em sua ordem quanto a sua orientaçãoEsse foi o primeiro ponto importante da planificação/escrita do nó. O segundo ponto é que assim forjamos o lugar do sujeito.

Lacan vai dizer que, enquanto analistas, precisamos operar naquele que nos pede uma análise essa passagem de 3D para 2D, para que algo, o sujeito no caso, possa ser espremido/apertado (coincer) no centro do nó e afetado pelos 3 registros: Real, Simbólico e Imaginário. (lição 21/5/74): 


Mas, também, não esqueçamos, na planificação do nó borromeu se organiza uma orientação (dextrogiro e levogiro) e determinamos uma ordem que ,segundo Lacan [1], deve ser RSI; SIR; IRS, que são, respectivamente: religião (realizar o simbólico do imaginário),  a psicanálise (simbolizar o imaginário do real) e a matemática (imaginarizar o real do simbólico). Podemos pensar que na religião podemos tirar o sujeito do gozo sígnico do imaginário por meio do simbólico. Da matemática podemos transformar em imagem, imaginarizar, o real (do gozo) do simbólico. E, por fim, na psicanálise se pode simbolizar isso que do real se tornou acessível pelo imaginário. Penso que aí resida um dos motivos de Lacan sugerir que os analistas devem seguir a matemática, já que é por meio dela que o real pode ser imaginarizado para, assim, poder ser simbolizado pelo dispositivo analítico.

Além desse aspecto clínico que sugere algumas direções possíveis do tratamento, outro aspecto surge a partir do título do seminário: “Os não-tolos vagueiam”. Enquanto o candidato à análise não se permitiu planificar seu nó, ele não se permitiu se fazer tolo do real.  Quando, por outro lado, não se é tolo do real, o sujeito vagueia, está sem rumo. Para Lacan, “os não-tolos são os que se recusam a captura do espaço do ser-falante”. Logo, “Os não-tolos vagueiam”. Acreditam “que a vida não passa de uma viagem”.

Pelo que pude entender e articular com minha clínica, esse “vagar” dos que não se fazem tolos do real, se refere aos pacientes que têm certa dificuldade em se deixar levar pelo dispositivo analítico. Pensam de forma muito concreta os conteúdos de uma análise e têm um apreço muito grande pela realidade tridimensional (e aqui estou me referindo ao nó em 3d), não abrindo o espaço do ser-falante no centro do nó.

É função do analista ir deslocando o candidato a análise dessa lógica 3D em direção ao eixo da tolice, de modo que cada vez mais se torne tolo do real e do inconsciente. Configura-se, doravante esse seminário, uma nova ética: a ética da tolice. Uma análise, em sua finalidade, conduziria o analisante a se tornar cada vez mais tolo do real.

O nó borromeu planificado é, segundo Lacan, o que Freud chamou de realidade psíquica.  É a forma singular como cada um consegue “saber-fazer com lalangue (alíngua)”, portanto com o gozo. O ics lacaniano passa a ser, nesses últimos seminários, o resultado, o produto, de um saber-fazer com lalangue (Seminário 20), e não mais o intervalo entre significantes e muito menos um depósito de memórias, como pensava Freud. A direção do tratamento proposta por Lacan nesse seminário, penso eu, é que ao nos tornarmos tolos do real, podemos, sempre que possível e houver analista, escrever e reescrever o nó de nossos analisantes, considerando todas as possibilidades possíveis de ordem e orientação. Para isso, temos que puxar uma corda (R;S ou I), soltar, virar, rebater, de modo a planificá-lo naquilo que Lacan chamou de boa ordem (RSI). Nesse sentido nos abre, e formaliza, um leque de possíveis intervenções que não foquem exclusivamente no simbólico, que vinha fazendo desde a clínica do significante.



[1] A outra ordem seria: RIS; ISR; SRI.


LACAN, JACQUES. Seminário: Os não tolos vagueiam – 1973-1974 - Trad. Espaço Maebius Pisicanálise – Salvador – Bahia, 2016.

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