Gostaria, inicialmente, de fazer uma distinção e demarcação no conceito de gozo, já que atravessa de ponta a ponta a obra lacaniana e sofre mudanças ao longo do tempo. Somente para citar 3 mudanças importantes: o gozo articulado com o objeto @ causa do desejo, que consiste em um resto do processo de simbolização derivado da escolha alienante ao campo do Outro do sentido. Ao fazer essa escolha, o Gozo do Ser cai no não-sentido, na lúnula da interseção, e só poderá ser recuperado de forma parcial pelo objeto @ no momento em que a pulsão retorna a sua fonte.
Posteriormente, nos seminários em que se constrói a concepção do
objeto mais-de-gozar, o gozo passa a ser esse objeto que recupera uma parte de
gozo que obtura o furo do campo do Outro, do saber, mas que existe um efeito de
real, que torna possível cair desse lugar para o falasser não ficar tão fixado
em uma única forma de gozar. Segundo Lacan, o que não gira, range. Estava se
referindo a rotação dos 4 discursos da psicanálise.
Com a proposta de trabalho sobre a letra, a partir do texto
Lituraterra, Lacan inaugura um horizonte que nos permite pensar o gozo como
algo que se escreve, que sulca, que define alguns caminhos facilitadores que encerram
em escolhas objetais e posições sexuadas singulares a cada um. No seminário 20,
que foi objeto de trabalho de nosso cartel, essa tese da letra e do escrito
está muito presente.
Se antes podíamos pensar que o significante mortifica o gozo, isto
é, faz do corpo deserto de gozo, a partir do seminário 20 Lacan postula que o corpo é substância gozante. Tal
aforismo indica que o corpo goza e é substância, talvez no sentido aristotélico
de substância, em que encontramos a seguinte definição: “o universal não é em nenhum sentido substância” (Reale apud Francisco,
2018). Se o corpo goza, isso ultrapassa a ideia de que o corpo é deserto de
gozo. O gozo é/está no corpo e suas marcas/letras comemoram um evento de gozo
do Outro materno. É essa escritura que adoece o humano em sua ex-sistência e é
esse corpo que causa o mal-estar da civilização, segundo Lacan (A Terceira). Talvez
Lacan parta do gozo feminino e do gozo místico para formalizar esse
desdobramento teórico sobre a substância gozante. Sigo o fio do gozo místico
com esse mesmo propósito e para isso vou falar um pouco da obra que está na
capa do seminário 20.
Santa Teresa D’Avilla e o anjo com o dardo de ouro, escultura feita
por Bernini que pode nos ajudar na tarefa de pensar o conceito de gozo em sua
amplitude e complexidade. Segue seu testemunho em um momento de Êxtase:
“Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja
ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que
ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as
entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu
ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande
que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor
imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava
senão com a presença de Deus”. (Santa Teresa D’Ávila).
Outros relatos de êxtases[1]
obtidos por meditação budista, yoga, e outras práticas, se somam a essa
experiência corporal descrita pela santa. Há relatos que testemunham uma
espécie de perda de limite corporal, onde o corpo se mistura com o meio (o Sol
entrando na cabeça), ou de uma sensação de uma falta de limite no espaço (o mar
e o céu se fundem; sensação de um espaço infinito) e perda da gravidade. Há,
inegavelmente, algo que acontece no corpo. Santa Teresa alcançava esse estado
por meio da ascese, que consiste em formas de renunciar as distrações e os
prazeres mundanos. As práticas podem ser: mortificação do corpo, autoflagelação,
incisões, escoriações, mutilações, chicotadas, jejum, etc.
Teve acesso a essa prática quando estava muito doente, supostamente de
malária. Foi nesse contexto de muito mal-estar com seu corpo, intensificado
pela prática da ascese, que obteve sua primeira experiência mística com deus e
que, posteriormente, a levou a formalizar uma metodologia meditativa em que
propõe 4 passos. Os 3 primeiros passos são marcados pelo silêncio e o
autofechamento meditativo, que são condições para chegar no último passo que é
descrito da seguinte forma:
O quarto - "devoção do êxtase ou
arrebatamento" - é um estado passivo no qual o sentimento de estar num
corpo desaparece (veja II Coríntios 12:2–3). A atividade sensorial cessa, a
memória e a imaginação também são absorvidas em Deus ou são
"intoxicadas". Corpo e espírito sofrem de uma dor doce e feliz,
que alterna entre um tenebroso brilho, uma completa impotência e inconsciência,
uma sensação de estrangulação ou, às vezes, de um voo extático tão
intenso que o corpo literalmente se ergue no espaço.
Considerando a ascese e o processo meditativo de voltar à atenção
para o próprio corpo, o que se sobressai é uma aparente contradição: se coloca
em evidência o corpo – e já adianto que é o corpo do Imaginário – para que se
possa perder as coordenadas mentais sobre ele, seu contato com o mundo, suas
referências Simbólicas. Vocês verão na cadeia borromeana que o gozo do corpo é
fora-simbólico. Parece-me que esse método de evidenciação do corpo cumpre a
função de inchar o corpo do Imaginário e concomitantemente reduzir o gozo
fálico e consequentemente o Simbólico, que é suportado por lalangue.
Como propõe o misticismo cristão: o êxtase como forma de apreender
algo pelo corpo que seja inacessível por meio do saber. O que seria esse gozo
fálico que fica estreitado pelo gozo do corpo?
Lacan, no seminário 20, assevera que o gozo fálico e do corpo são auto-eróticos,
já que não existe a relação com o Outro sexo, sendo coerente com a tese de que a
relação sexual não existe. Por sua vez,
o caráter auto-erótico do gozo fálico consiste em gozar dos próprios objetos
que estão recortados no próprio corpo, mas que ganham contornos Imaginários e
Simbólicos. O falasser goza dos objetos a-sexuados
que estão emoldurados pelo fantasma, que são: oral, anal, escópico e invocante.
De um Outro ao outro, isto é, de um Outro sexo que não existe aos objetos @s
que se tornam o parceiro fiel do falasser. É por meio do gozo fálico que o
fantasma sexualiza as letras de gozo advindas do corpo do Real, já que essas
são parassexuais (A Terceira).
A partir da conferência “A Terceira” temos a cadeia borromeana organizada, e assim acho que fica mais acessível ressaltar a distinção dos termos de 1) gozo no corpo do Real e as letras de gozo do Outro e 2) gozo do Outro que não existe (J(?)), que dele advém o gozo suplementar de Santa Teresa. Agora também fica visível de qual corpo que Lacan afirma que é a fonte do mal-estar da civilização. Parece-me que é desse corpo que advém a “dor imensa” que Santa Teresa D’Ávila testemunha de seus momentos de êxtase. Mal-estar e dor intensa, parece que é disso que se trata a escrita de gozo do Outro materno.
Detenho-me daqui em diante em abordar o gozo do Outro (J?) e em uma
possibilidade para pensarmos em como lidar com o afeto da angústia, que é essa
invasão desse gozo no campo do Imaginário. Lacan define a angústia como “um
medo de nosso próprio corpo” e uma “desconfiança de nos reduzirmos a ele”. Acredito
que esteja falando na redução ao corpo do Real. Pois bem, se o gozo do Outro é
fora-simbólico e está separado do gozo fálico pelo objeto @, como se pode falar
dele, faze-lo existir? Lacan nos responde isso afirmando que sua existência
está condicionada pela fala de amor.
E não é justamente isso que Santa Teresa faz quando testemunha seu encontro
místico com o anjo?
“Eu tinha a impressão de que ele me
perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas.
Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava
toda abrasada num imenso amor de Deus”.
É pela fala de amor (PCS), suportado também pelo sentido, que se
pode dizer algo dessa letra do Real que invade o corpo (do Imaginário) que
permite apertar esse campo do gozo do Outro, assim como o “saber que se
inscreve de lalangue”, que é o ICS, pode apertar o gozo fálico. Assim se torna
possível reduzir tanto os efeitos do sintoma quanto da angústia. Sobre isso que Lacan chamou
de fala de amor vou traçar uma
articulação com algumas experiências que ouvi de meus pacientes e de um relato
de um livro intitulado “102 Minutos: A História Inédita da Luta Pela Vida nas
Torres Gêmeas”. Uma paciente que sentiu
que estava correndo risco de vida foi arrebatada por um afeto de desespero que
a única coisa que conseguia pensar era no amor de seus pais. Outro paciente que
teve uma experiência ruim com ayuaska desencadeou uma ideia desesperadora de
que morreria e isso o fazia pensar no amor que tinha por sua namorada, que
havia recentemente terminado. Curiosamente, depois que isso passa, disse que
realmente não gostava mais dela e seguiu com o término. Trecho do livro citado:
O noivo liga para sua noiva depois que o avião bate no
prédio. Estamos falando de 11 de setembro. “Kris (falando para sua noiva por
telefone), houve uma explosão. Estamos presos em uma sala. A fumaça não para de
entrar. Não sei o que acontecerá. Mas quero que você saiba que a minha vida foi
muito melhor e muito mais rica porque você estava nela. - Eu te amo. Adeus”.
Vemos, nessas situações extremas, que é o amor que vem como
suplência dessa constatação no real de que o Outro sexo não existe. A fala de
amor, junto com o gozo-sentido, parece ser essa suplência que dá conta de
reduzir, “apertar”, esse campo de gozo do Outro, que deriva esse afeto da
angústia. Uma outra paciente relata o alívio quase imediato de crises de pânico
quando o marido amado aparecia para socorre-la. Ela dizia que era como se ele
fosse capaz de “trazer o chão de volta para meus pés”, nos momentos em que
sentia que fosse morrer de tanta ansiedade.
Acredito que com essas referências podemos avançar teoricamente em
uma discussão que estamos fazendo em nosso grupo acerca da clínica que Tysler e
Pirone propõem a partir do que denominaram de “Imaginário Narrativo” para poder
lidar com uma “economia psíquica determinada pela exclusão e segregação social”,
que é o caso dos refugiados e exilados. Sem me estender mais, encerro agradecendo
a atenção de vocês.
Obrigado.
Referências Bibliográficas
D’ÁVILA, S.T. Livro da vida:
autobiografia de Santa Teresa D’Ávila(1515-1582). São Paulo: Editora Família
Católica, 2018.
DWYER, J. FLYNN, K. 102 Minutos: A História Inédita da Luta Pela Vida nas Torres Gêmeas . Rio de Janeiro, Editora Jorge ?Zahar, 2005.
FRANCISCO, A. A. Uma breve investigação do conceito de substância em Aristóteles, na sua obra Metafísica. São Paulo: Revista Pandora Brasil, 2018.
< https://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/tematica_livre/anderson_4.pdf>
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
LACAN, J. A
terceira (1975). São Paulo, Fórum do Campo Lacaniano de São Saulo: 2022.
LACAN, J. O
Seminário Livro 20, "Mais, ainda" (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008.
MORAES, C. C. A Experiência do Êxtase:
Categorizando os Processos Envolvidos na Ampliação da Consciência. Campinas,
Estudos de Psicologia, 2002. < https://www.scielo.br/j/estpsi/a/krqPPSGrYMCfPX9vKth6f3G/#>
TYSZLER, J. O fantasma na clínica psicanalítica. Recife: Ed. Da Association Lacanienne Internationale, 2014.
[1] Celia Carvalho de Moraes, UNB. Experiência do êxtase. https://www.scielo.br/j/estpsi/a/krqPPSGrYMCfPX9vKth6f3G/#