Esboçando este trabalho, relativo ao desanolamento do Cartel
sobre a Feminilidade, lembrei-me que elegi o tema em questão quando ouvia o
Seminário de Charles Melman no ano passado. Melman falou, em algum momento, a
respeito dos desencontros entre homens e mulheres e da impossibilidade de
resposta, do lado masculino, à demanda feminina. Naturalmente ele articulou
este aspecto ao fato da posição feminina não ser sustentada a partir do
significante fálico, não havendo aí um significante que diga sobre ela.
Assim, se a problemática feminista situa-se ao redor da
inexistência e do não-todo, torna-se hoje para mim significativo a tomada deste
tema em um Cartel, por entendê-lo como um percurso de produção, de criação. E
afina, não pode a criação ser definida como uma busca de resposta a esta
posição feminina, na medida em que procura traçar significações exatamente
aonde elas faltam? Particulares também me parece a composição deste grupo,
cinco mulheres, e o longo caminho de estudos que escolhemos traçar, talvez numa
vã tentativa de abrangência, de totalidade do tema, nesta busca de
significações.
E, por estas e outras, me posiciono para escrever este
trabalho de uma maneira bem diferente da usual. Em geral, primando pelo rigor
teórico e temendo erros conceituais, me atenho aos textos estudados para o tema
e aí componho algo. Desta vez, sentia desejo de um certo distanciamento
teórico, de produzir um texto mais pessoa, menos técnico. E é nesse movimento
que algumas idéias vão aparecendo e sobre elas vou escrevendo, talvez sem uma
coerência absoluta, sem um fio condutor único, quem sabe com um caráter mesmo
mais feminino, pois não é a loucura essencialmente feminina?
Bem, agora consigo entender porque temos o Dia Internacional
das Mulheres e não existe o equivalente para os homens… Assim como porque o
Movimento Feminista tem ares tão masculinos… Clamar, reivindicar, marcar uma
existência de direito, assim como fazer semblante ao masculino não é para quem
quer, mas para que não pode.
Certo dia, ao longo de nossos estudos, fui acometida por uma
imagem: sentada na frente de uma belíssima penteadeira, vestimentas e penteado
do início do século passado, eu retocava o pó-de-arroz e me preocupava com qual
colar usar. Brinquei a respeito desta imagem com as colegas de Cartel, espécie
de idealização avessa à condição da dita mulher moderna que para se fazer
sujeito busca cada vez mais a negação de ser não-toda, num mundo onde isso
acaba sendo muito custoso.
Custoso e duvidoso, pois a maternidade, ora indicada como
matriz simbólica da feminilidade, parece reduzir-se a um espaço na agenda:
programável, distancia-se do campo do desejo, mais uma tarefa, entre tantas, a
cumprir…
Assisti recentemente um documentário genial de Marcelo
Masagão, denominado “Nem gravata, nem honra”, a respeito da diferença entre
homens e mulheres. Ali, na tomada de depoimentos de pessoas de uma pequena
cidade do interior de São Paulo, entre tantos outros, dois elementos são
apresentados: a mulher é dissimulada por natureza e gosta de romance.
Dissimulação e romance, máscara e demanda de amor, sem
duvida dois aspectos atrelados à feminilidade, à posição feminina em sua luta
de subjetivação, de fazer-se sujeito por debater-se com a falta de um
significante que a enuncie.
A mascarada responde exatamente ao enigma da feminilidade,
fazer-se desejar apesar de sua carência, mascarar a carência através de um
corpo imaginariamente constituído como falo. Isso, ao mesmo tempo em que possa,
a partir das identificações que permitam uma posição simétrica à da mão,
portanto do lado da carência, desejar e amar um homem. Destino árduo e
paradoxal que em tempos de “direitos iguais” parece ganhar requintes de
dificuldades… Como é possível desejar e amar um homem a partir da pretensa igualdade?
Como conciliar fragilidade nesta condição? Qual máscara usar no baile
contemporâneo?
Romance, demanda de amor, o segundo aspecto aqui destacado
será também uma tentativa de resposta ao primeiro? Pois parece que se tem algo
do qual as mulheres não abrem mão, esse algo concerte exatamente à
reivindicação de amor. O amor estabelece uma relação de sujeito a sujeito, da
qual a mulher se beneficiaria exatamente por sua carência de subjetividade. É
para serem sujeitos que as mulheres querem ser amadas, acreditando que assim
serão dotadas daquilo que lhes falta: um significante que as diga.
Portanto não é pouco que este amor exige, pois demanda que
ele possa mudar a ordem das coisas. Serge André nos fala o quanto
este pedido de amor pode reivindicar, nesta tentativa de negação de ser
não-toda, aludindo à seguinte fala de Julieta para Romeu: O que há num
nome? O que chamamos rosa terio o mesmo perfume sob outro nome. Romeu, renuncia
a teu nome; e em lugar deste nome, que não faz parte de ti, toma-me toda.
Então o que esta demanda de amor proclama, ou reclama, é uma
revogação da lei, ou seja da castração, e, em seu lugar, a instauração de um
estatuto particular, de uma regra, onde o ser mulher, o não
toda, se transformaria em nome.
Sem Nome, além do título deste trabalho, era uma rede
de sorveterias da cidade em que eu morava no início da minha adolescência. O
sorvete era mesmo delicioso, a sorveteria famosa e eu me intrigava a respeito
da escolha deste nome fantasia.
Achava mesmo que uma possível ausência de criatividade
pudesse ser usada tão bem, pois Sem Nome era um “nome que
pegou”, ninguém esquecia como se chamava a tal sorveteria… Acredito, que a
capacidade criativa mascarada pela aparente simplicidade desta
escolha e o fazer-se nome a partir de uma referência à ausência deste eram os
elementos que me instigavam, e continuam a me intrigar, pois é sobre eles que
estou escrevendo.
Mas será que o amor demandado pelas mulheres poderá
recobri-las com o mesmo sucesso da sorveteria? Alcançará o amor este estatuto
de traçar, delinear, criar significação onde ela inexista?
Deixo vocês com um poema de José Paulo Paes, que nos alcança
a estas e tantas outas questões:
Meu amor é
simples, Dora,
Como a água e o pão
Como o céu
refletido
Nas pupilas de um cão.
Autora: Zeila Cristina Facci Torezan
Trabalho apresentado na Jornada de Carteis da Biblioteca
Freudiana de Curitiba/2003, no desanolamento do Cartel sobre Feminilidade.
Referência Bibliográfica
ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 295 p.
FREUD, S. A feminilidade, 91932-3). Obras
Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1973.
______ A dissolução do complexo de Édipo,
(1924). Obras Completas, Madri: Biblioteca Nueva, 1973.
______ Algumas conseqüências psíquicas da diferença
sexual anatômica, (1925). Obras Completas, Madri: Biblioteca
Nueva, 1973.
______ Sobre a sexualidade feminina, (1931). Obras
Completas, Madri: Biblioteca Nueva, 1973.
MELMAN, C. Seminário: Novas Formas Clínicas, no
início do terceiro milênio. Curitiba, abril, 2002.
PAES, J. P. Melhores Poemas. São Paulo:
Global, 2000. 241 p.