Devir pequeno analista
Em meu trabalho do fórum ALPL em abril passado, parti
do seguinte trecho de Estou falando com as paredes (Lacan, 2011):
As paredes, antes de
ganharem estatuto, de ganharem forma, é aí, logicamente, que as reconstruo.
Esse S barrado, esses S1, S2 e esse a com que brinquei com vocês durante alguns
meses são exatamente isso, a parede atrás da qual vocês podem pôr o sentido do
que nos concerne, daquilo que acreditamos saber o que querem dizer a verdade, o
semblante, o gozo, o mais-de-gozar. É em relação àquilo que não precisa de
paredes para ser escrito, esses termos como quatro pontos cardeais, é em
relação a eles que vocês têm que situar o que são (p.97).
A estrutura do discurso opera (logicamente) como parede
que dá contorno ao lugar que nos concerne como analistas em função. Os quatro
termos ordenados na estrutura discursiva funcionam como paredes que fazem
barreira ao sentido do que nos concerne e assim nos situamos. É um discurso sem
palavras que produz uma escrita comandada pela letra, onde os quatro termos
operam como pontos cardeais para a produção de um dizer e para a função
analista.
Para nos orientarmos na superfície da Terra pelos
pontos cardeais, precisamos de um referente e da boa posição de nosso corpo em
relação a ele. Tendo o Sol como referente, convencionou-se apontar o braço
direito para sua nascente para localizarmos o leste, por consequência o oeste
está à nossa esquerda, o norte à frente e o sul atrás de nós.
Nesta pequena e densa formulação, Lacan indica que os
quatro termos (S1, S2, $, a) são os pontos cardiais para nos situarmos como
analistas. Muito bem, mas qual é o referente com o qual situamos nosso corpo em
uma boa posição para nos orientarmos adequadamente com esses pontos cardeais?
Pois, sem isso, corre o risco de tomarmos o oeste por leste e rumarmos para o sul,
achando que caminhamos para o norte. Evidentemente, dirão vocês, se é ao final
de uma análise que um analista pode começar, o referente e a boa posição de
nosso corpo para nos situarmos como analistas estão enlaçados a esse final e
sua abertura, ou seja, ao processo de produção de um analista a partir do que pode
operar pela abertura de um final de análise. Resta pensarmos o que se abre e
como opera tal abertura na duplicidade de um analista em intensão e em extensão.
Além disso, acrescento que nosso referente para uma boa
posição também se enlaça com a situação atual (em uma determinada época) da
psicanálise. Fator crucial, como afirmou Lacan em 56 (1998), fator determinante
do que se pode esperar de um psicanalista. Uma premissa simples e extremamente
certeira, os analistas não são sem a psicanálise de sua época, o que é proposto
como ensino, como formação, como ética em nome de uma psicanálise, reflete
diretamente no que se pode esperar dos analistas de um tempo. Na época de Freud haviam as adversidades da
inauguração de um campo, de uma nova leitura do humano que subvertia os
conhecimentos médicos e tocava em pontos muito polêmicos da cultura e da moral do
início do século 20. Na vez de Lacan, propagava-se uma suposta psicanálise
adaptacionista, egóica, normativa e desviante de uma ética já enunciada por
Freud. E o que dizer da situação da psicanálise em nosso tempo? Não acho que
seja das melhores. Ainda que nunca tenhamos sido tão populares e procurados,
seguimos numa luta muito similar à de Lacan, talvez mais difícil, para a
sustentação de uma ética. A demanda adaptacionista e normativa está longe de
ter se esgotado e soma-se a um crescente imediatismo. Aliás, são fatores que
também se aplicam à uma parcela das propostas de formação analítica, adaptadas
e normatizadas às regras acadêmicas/universitárias, onde em um curto espaço de
tempo se é um psicanalista diplomado.
Ainda um terceiro ponto se amarra na composição de
nosso referente. Tratam-se dos efeitos de um tempo e de um espaço sobre a
estrutura linguageira, a nossa linguisteria e seus efeitos como lalíngua
em nosso humano que é falasser, humus da linguagem. Não há como
desconsiderar, não há como nos situarmos sem levar em conta os efeitos em nosso
falasser das transformações no campo linguageiro. A velocidade,
amplitude e distorções das informações, a IA, a predominância das imagens e das
telas, as relações virtuais, o algorítimo, a vigilância de nossas vidas, etc...
não são em nada banais e devem participar da composição do referente para a boa
posição de nosso corpo afim de que possamos nos orientar bem na função
analista. Sabemos que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e em meio
ao seu dizer produz seu próprio escrito, um escrito que se dá em transferência
seguindo uma sitaxe e uma gramática próprias ao argumento fantasmático que se
constrói em análise. Mas, seria possível que esta semiótica tão singular se
produzisse de forma independente do mundo? Não creio que o in-mundo com
o qual trabalhamos seja apartado do mundo.
Sem negar ou desconsiderar o entrelaçamento destes
pontos, para o encontro de hoje escolho focar especialmente no primeiro, a
abertura a partir de um final de análise e a produção de um analista, inevitavelmente
carregado das consequências do segundo, a situação atual da psicanálise.
Je suis un a d’analyste, frase do seminário 17,
traduzida em nossa versão do seminário como “Eu sou um pequeno analista” (Lacan,
1992, p. 115), foi a convocatória para esboçar aqui algum tipo fechamento parcial
do tema. A significação implícita nesta frase não é nenhuma novidade para vocês
e está contemplada na tradução: pequeno analista em alusão ao objeto a
que ocupa o lugar de agente ou semblante no discurso do analista. Muito bem,
mas o que capturou minha atenção foi a maneira chistosa e cifrada de transmitir,
neste momento, tal conteúdo. Me ocupei da forma, pois o chiste convoca um
terceiro e abre o leque de efeito de sentido. Assim, fui habitada pela
pergunta: o que ele procurava causar com essa frase chistosa e cifrada? E,
obviamente, o que ela me causou?
A fala se deu em um dos momentos em que Lacan afirmou
não participar do discurso universitário em resposta às cobranças que recebia
para retomar o seminário sobre o Nome-do-Pai e explicar, de uma vez, aquele
conceito. Em nosso português brasileiro, sua resposta ressoaria, mais ou menos,
assim: não sou aquele que coloca o saber no lugar do agente e vai lhes dizer o
que é o Nome-do-pai, sou um pequeno analista, um analista com a
minúsculo. Pensei nesta versão da tradução, um analista com a minúsculo, por um
efeito de contraposição ao sentido de engrandecimento que damos quando dizemos
que algo se escreve com letra maiúscula, por exemplo: “fulana é uma mulher com
M maiúsculo”.
Na transcrição em francês, há indicação de que a plateia
ri quando ele pronuncia a frase e sua continuidade que é: uma pedra
rejeitada desde o início, mesmo se em minhas análises, eu me torno a pedra
angular (Lacan, 1992, p.115). Lacan não estava fazendo graça de graça,
sabia que tocava em um ponto delicado e usou o chiste como recurso para se
fazer escutar ou, melhor, para que seu público de analistas se escutasse. Se eu
estivesse naquela plateia, talvez pensasse: “meu deus, se esse cara é um
pequeno analista, um analista com a minúsculo, quem poderá ser grande?” Acho
que isso realmente causou e espero que insista nos causando.
No final do seminário 11, Lacan (1988) articula o final
de análise com um devir pulsional: “depois do referenciamento do sujeito em
relação a a, a fantasia fundamental devém pulsão... Como um sujeito que
atravessou a fantasia fundamental, pode viver a pulsão?” (p.258). E, se o final
de análise é o começo de um analista, podemos pensar esta vivência pulsional atrelada
à função analista, à operatividade do desejo do analista. Assim, leio a frase
de Lacan (1992) do seminário 17 com estes elementos do 11, substituo o sou por devir
e elimino o artigo, devir pequeno analista, com o intuito de marcar um
movimento que a produção e a função analista contemplam através do devir
pulsional.
Isto posto, retomo meu ponto nodal para indicar que o
que uma análise deixa em aberto se associa a uma vivência pulsional onde o
desejo do analista possa operar em intensão e em extensão. Fazer ali com
este devir pulsional, passar em ato a experiência de sua análise através da
presença capaz de suportar a transferência e seus necessários enganos, bem como
a função de tela para os objetos a que convenham a cada uma das curas
que conduza até o ponto que seja desnecessária e descartada como resto. Também passar
em ato a sua experiência de análise através de uma transmissão, o que permite passar
o tempo passando o passe, enquanto perdure o devir analista. Um analista devindo,
ao menos, dois.
Falando assim até parece paradoxalmente grandioso esse
negócio de devir pequeno analista, mas outras passagens de Lacan nos garantem
que não, lembro mais uma que está no texto Discurso na Escola Freudiana de
Paris (Lacan, 2003):
O psicanalista, como
dizem, aceita sem problema ser merda, mas não sempre a mesma. Isso é
interpretável, sob a condição de que ele se aperceba de que ser merda é
verdadeiramente o que quer, a partir do momento em que se torna testa de ferro
do sujeito suposto saber. O que importa, portanto, não é esta ou aquela merda.
E também não é qualquer uma. É que ele aprenda que essa merda não é dele...”
(p.281).
Nada grandioso ser merda ou lixeira, como disse o
mestre em outros momentos.
Porge (2014 e 2019) associa a vivência pulsional ao
final de análise de um analista à pulsão invocante e à sublimação. Propõe que
se trata para o analista, nesse para além da análise de um encaminhamento
sublimatório da vivência ou do devir pulsional. Acho uma proposição muito
interessante (destaco aqui alguns poucos elementos, mas remeto vocês ao texto
do autor, primoroso e rigoroso em suas construções sobre o tema), pois além da
sublimação ser definida por uma satisfação pulsional sem o recalque, vocês sabem
que Lacan reconfigura este conceito, retirando-o dos equívocos de desconexão
com o sexual, de grandiosidade e de reconhecimento social. Embora pouco
explorado, o conceito de sublimação atravessa a obra de Lacan, fala dele em 52
pela primeira vez, associa-o diretamente ao amor cortês desde 59-60, tema
presente até o final de seu ensino. Porge (2019) destaca a importância desta
articulação entre sublimação e amor cortês:
“A sublimação, em
certa medida, é uma ética da erótica, uma erética. O amor cortês
exemplifica uma ética fundamentada no real da Coisa, e não no ideal do Bom;
ética na qual a Dama quem ocupa o lugar da Coisa inacessível, representando uma
dimensão de impossível no cerne do amor.” (p.17)
Porge (2019) retoma a etimologia da palavra sublimação,
do latim sublimis (alto, elevado) e sub-limus (o que sobe
obliquiamente, mas também limo, lama), para indicar que o conceito comporta
dois movimentos contrários, um de elevação e outro de descida. Não é à toa que
podemos ler no seminário 20: “os discursos visam sempre à menor besteira, à
besteira sublime, pois sublime quer dizer o ponto mais elevado do que está em
baixo.” (p.23).
Com a releitura de Lacan sobre a sublimação, não lhe
resta nada de grandioso, de busca de valorização ou reconhecimento social, muito
menos de apartamento do sexual, trata-se apenas de um encaminhamento pulsional
que pode operar alhures ao recalque a à formação sintomática e isso combina
muito com analista com a minúsculo. Além do mais, o autor (Porge, 2014) associa
tal devir pulsional para um analista à vivência da pulsão invocante, em
especial em sua relação com o silêncio. Um silêncio fruto de final de análise como
destino pulsional, silêncio que faz voz e permite que o dizer ecoe, na forma de
l’une-bévue, no corpo como estrutura.
Partindo do pressuposto que vocês estejam de acordo com
tais formulações, convido-os a conversarmos sobre as condições que temos hoje
para sustentarmos o devir pequeno analista. Em outras palavras: a situação
atual da psicanálise nos é favorável a esta sustentação? Ela nos dá o suporte necessário
para o devir pulsional que a abertura de um final de análise produz? Sim, pois
sabemos que por mais solitário que seja o nosso trabalho, ele não é sem outros.
E como andam esses outros, como andam as escolas, seu espaço e função, na era
digital, no tempo das especialidades e especializações comandadas por um
discurso universitário e em um mundo, como nos diz Aurélio Souza (2003), “onde
o objeto adquire toda sua importância” (p.188)? O que se vende hoje como
formação analítica e, muitas vezes, como transmissão? Que a sustentação destas
e de muitas outras interrogações possam nos manter trabalhando na direção
subversiva já apontada pelos mestres.
Bem, compartilhei um pouco do que me causou o “eu sou
um pequeno analista” de Lacan ou, como sugeri, um analista com a minúsculo.
Devir pequeno analista se impôs para mim como a minha leitura de nosso tema
eixo. Uma frase emblema, talvez um brado ou um jargão de resistência para a
sustentação do discurso do psicanalista, hoje. Uma espécie de síntese dos
elementos que compõe nosso referente para tomarmos uma boa posição e nos
orientarmos pelos pontos cardeais que a estrutura do discurso nos fornece. Que
possamos seguir pequenos, lhes rogo com este em nada grande texto.
Zeila Facci Torezan
Referências
Lacan, Jacques (1988). Seminário, livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1963-64). Rio de Janeiro: Zahar
Lacan, Jacques (1992). Seminário, livro 17: o avesso da
psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, Jacques (1998). Situação da psicanálise e formação do
psicanalista em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, Jacques (2011). Estou falando com as paredes: conversas
na Capela de Saint-Anne. Rio de Janeiro: Zahar.
Porge, Érik. (2009). Transmitir a clínica psicanalítica: Freud,
Lacan, hoje. Campinas: Editora da Unicamp.
Porge, Érik (2019). A sublimação, uma erótica para a
psicanálise. São Paulo: Aller.
Souza, Aurélio (2003). Os discursos na psicanálise. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud.