Olá, bom dia! É uma grande satisfação
estar aqui participando dessa transmissão nos dois dias de Jornada da ALPL com
vocês. Gostaria de agradecer a presença de todos e , especialmente, aos colegas
da Associação que foram interlocutores valiosos nos estudos e discussões neste
eixo, que particularmente me animou e convocou a trabalhar e refletir sobre questões, impasses e dificuldades em
nossa prática, hoje.
Lacan, em 1953, em Função e campo de fala e
linguagem em psicanálise, afirma que todo analista deve
renunciar à pratica
da psicanálise caso não
consiga alcançar, em
seu horizonte, a subjetividade de sua época. É fundamental estarmos atentos ao modo
como os discursos dominantes da época determinam os sujeitos e suas formas de sofrimento.
O primeiro ponto que decidi levantar
nesta escrita foi uma questão que escutei algumas vezes: podemos dizer,
hoje, que se trata do mesmo sujeito?
Sujeito dividido, sujeito do inconsciente, efeito da linguagem, o parlêtre; conceito assiduamente trabalhado ao longo da
obra de Lacan, que intitula um seminário em 1965/66: O objeto da psicanálise.
Sujeito esse que se encontra entre os significantes, que aparece na hiância, é
evanescente e não ontológico:
sujeito do gozo.
(acrescento as palavras de Aurélio de
ontem: o sujeito como uma resposta do
real)
No livro O homem sem gravidade,
gozar a qualquer preço (2003), em
meio a entrevistas entre Lebrun e Melman, são levantadas questões que falam de
uma nova economia psíquica do homem contemporâneo, colocando em debate a emergência
de um novo sujeito, uma nova estrutura, um mutante. Fazem-se colocações acerca
de um sujeito que não seria mais o sujeito do inconsciente, que não haveria
mais divisão subjetiva, e sim um sujeito bruto, que não se interroga sobre sua
própria existência; que perdeu lugar de fazer oposição, suas referências históricas
e cuja nova economia psíquica arrisca ter uma influência considerável na
subjetivação, cujo resultado é não encontrar seu lugar de sujeito.
Às vezes, parece dizer de um sujeito que
pede por existir — o sujeito falante de sempre , ainda que transformado pela lógica
da economia liberal — e, em certos momentos,
surge a impressão de um mutante.
Em um contexto onde não há mais mestre na cultura, o patrão é o gozo.
Partindo da posição de que sim, se trata
do sujeito dividido, e sim, o trabalho hoje em nosso ofício continua sendo com
essa estrutura do sujeito furado pela linguagem e, a partir disso,
impossibilitado da completude, fico com essa fala: sujeito que pede por
"existir". Então, o que
seria as especificidades do contexto de hoje que dialogam com formas de
apresentação e sintomatologias que associo a esse termo trabalhado por Melman :
uma nova economia psíquica; sobre o sujeito na contemporaneidade?
Hoje, 15 de março de 2025, completam-se
cinco anos que o lockdown foi estabelecido em Londrina. A pandemia não
foi pouca coisa. Escutamos, na época e até hoje, os efeitos desse atropelamento
do real em nosso contexto mundial, pessoal e nas falas dos analisantes que
aparecem em nosso consultório. Isolamento, grandes perdas, pânico, mortes, inúmeras
questões políticas e econômicas com
enorme impacto no laço social. A questão do online, que já existia, se expandiu
de maneira exponencial.
Muita coisa foi antecipada, vivida de
forma precipitada, atuada e perdida:
separações, suicídios, impossibilidade de rituais e lutos, respostas
singulares que podemos tentar ler de forma mais ampla. Houve uma grande
reviravolta em muitos setores, inclusive em nosso ofício. Algumas profissões ou
ocupações desapareceram, enquanto outras surgiram. O mundo “parado” e, ao mesmo
tempo, acelerado.
Muitas vezes, escutei que parece que foi
um tempo inexistente — 2020 a 2022 como
um apagão — uma sensação de desorganização, um tempo perdido ou onde se
desvanece. Relatos que marcam um antes e
depois da pandemia, ela como referência. Crianças e adolescentes foram
particularmente afetados na questão do laço social em fases cruciais de construção,
alienação e separação, na relação com os outros. A presença física, que antes
era proibida, passou a ser limitada, evitada e, cada vez mais, dispensada.
Para além da pandemia, avanços tecnológicos
e discursos atuais circulam na busca de otimizar o tempo, alta produtividade e
performance, com a crescente demanda por aproveitamento integral dele. Sintomas
um tanto generalizados se apresentam: exaustão, apatia, desorganização, cobranças
idealizadas e sacrificiais. Qual é o efeito no laço social em diversas situações que podemos articular com essa questão
da pandemia e do tempo?
Escrevendo esse trecho, me lembrei daquele
filme vencedor do Oscar
de 2023, que confesso ter me causado um mal-estar tremendo, necessidade
de intervalos e um grande esforço para chegar até seu fim: Tudo em Todo o
Lugar ao Mesmo Tempo, filme que reflete uma face desse acelero da vida
moderna, na tentativa de estar em vários lugares ao mesmo tempo, desempenhando
múltiplos papéis e tentando dar conta de tudo. Pessoas sobrecarregadas, sempre
conectadas, apressadas e perdidas. Outro filme que achei interessante e aborda
questões atuais é A Substância estrelado por Demi Moore; toca na questão
do envelhecimento e da tentativa de burlar e não lidar com esse processo,
com graves consequências. A busca
incessante da protagonista pela sua melhor versão, em meio a uma sociedade
machista e etarista que supervaloriza a imagem e o consumo, uma monstruosidade
se apresenta, além de refletir os laços empobrecidos.
Ouço com frequência, em diferentes faixas etárias,
relatos sobre incômodos no encontro com o outro. Falas que dizem de um conforto na conversa
virtual, nas trocas a pelo WhatsApp, pois você não precisa responder no
momento; se comunica, mas não se trata de uma conversa em tempo real. Relações
mediadas por jogos como o Shifting, relacionamentos amorosos com IA,
avatares e outras realidades. No ano passado, perdi um familiar querido e me
deparei com algo que, para mim, foi novo: velório online. É isso mesmo: para os
que não puderam se fazer presentes, não terão essa perda, acompanham online.
Há uma transmissão de ideais que sustentam
um modo de gozar. A tecnologia cria a ilusão de
ultrapassar limites, de estar em vários lugares ao mesmo tempo, de
acessar múltiplas formas de gozo sem abrir mão de nenhuma. Ela propõe, ainda, a
ideia de controle sobre o tempo e o espaço. Surge, então, uma demanda constante
de estarmos conectados acompanhada de um sintoma notável: a busca ilimitada
pelos objetos de gozo.
Rells, tik tok, vídeos que engajam não podem ultrapassar 20
segundos. A moda, as trends, duram semanas; os gadgets são produzidos em massa, e
o mercado se alvoroça com isso. Empobrecimento simbólico das palavras e das possíveis
articulações significantes, falta de tempo e paciência para ler, refletir: “se
não engaja, não vende"! O enxame de propagandas, cursos, e saberes de várias
áreas: coaches,
influencers,
especialistas de tudo. Muitas janelas abertas. Acesso imediato às coisas.
Respostas instantâneas com lugar de saber. Fake news? Sem comentários. Surto e
paranóia coletivos. Algoritmos, como mais uma forma de produzir segregação e
fidelização do consumidor. Tutoriais de como angariar seguidores, clientes,
pacientes e analisantes… opa! Até em
nome da psicanálise tem muita publi e conteúdo rondando por aí. O fast-food
está em tudo. Até na psicanálise?
Indivíduos perdidos e desorientados em seu
desejo, frente a um mandato de gozo. Pais desautorizados, na busca de diagnósticos
no lugar de uma nominação que não opera, buscando fora e não se
responsabilizando pelo lugar que ocupam no sintoma dos seus filhos. Alguns
valores predominantes de hoje são: imediatismo, facilidade e rapidez. Impaciência
com o que demanda tempo — onde foi parar a cultura do passo a passo?
Li uma matéria na quarta-feira que esse último ano, mais de 470 mil
trabalhadores foram afastados do trabalho por ansiedade ou depressão no Brasil,
um aumento de 68% em relação a 2023. O que esse dado nos diz sobre o mal-estar
na cultura hoje?
Na tentativa de não perder, negar o impossível e gozar a
qualquer preço nos deparamos com o sofrimento dos indivíduos, produtos desses
discursos. Como estão?
Como fica a relação com o objeto e o laço discursivo? Qual é a nossa posição no trabalho com a
psicanálise em intenção e extensão? Como operar com a psicanálise com
esses que chegam ao nosso consultório? Eles nos buscam? O que buscam?
Apresentam-se frustrados e depressivos. Apáticos e exaustos. Adictos,
com corpos que padecem e fenômenos de diversas ordens. Actings out e
passagens ao ato. Muitos deles hiperdiagnosticados, medicalizados, alienados,
anestesiados, apagados. Como despertá-los? Como tocá-los? Como fazê-los
emergir, cindir, advir, “existir" enquanto sujeitos? Como reintroduzir a
causa, reintroduzir a falta nos tempos de hoje?
Nas palavras de Lacan, o discurso
faz parte dos pilares do mundo. Em 1969, no Seminário O
avesso da Psicanálise, ele formula o discurso enquanto
conceito, trabalha sua estrutura e o propõe como um discurso sem palavras. Ele
relaciona a estrutura do discurso à linguagem, e além disso o articula ao real,
ao gozo e ao laço social. Ao desenvolver seus “quadrípodes”, Lacan salientou que os
oferecia para que com eles se fizesse algo. Trata-se de quatro lugares (agente,
outro, produção e verdade), duas barras e quatro letras (S1, S2, a e $) que, em
sequência, giram, permutam, e dão lugar a quatro
discursos , os quais
estabelecem os laços sociais e formalizam os modos de encontro do sujeito com o
outro.
Freud, em Análise Terminável e
Interminável (1937), propõe suas tarefas impossíveis para obter
felicidade e formula as três profissões impossíveis: governar, educar e
analisar. Lacan, nas últimas aulas do seminário 17, retoma essas profissões e
as articula aos discursos, acrescentando o fazer desejar nessa série. Assim,
ele correlaciona: O Impossível de governar ao discurso do mestre, o impossível
de ensinar ao discurso Universitário, o impossível de analisar ao discurso do
analista e o impossível de fazer desejar ao discurso da Histérica.
"Os quatro discursos operam, cada um, a
preservação preciosa de uma impossibilidade específica.”(Vegh, p.78) Qualquer
discurso, dado que o sujeito gira pelos quatro, é guardião de um impossível.
Enquanto laço social, é um modo de emparelhar gozo e linguagem: todo laço
social exige um enquadramento da pulsão e resulta em perda de gozo.
Em maio de 1972, Lacan proferiu uma conferência na qual
dissertou sobre o discurso do capitalista, já introduzido em O Avesso da
Psicanálise. Ele o apresenta como mais um discurso, e não como um quinto, pois não compartilha da mesma lógica
estrutural dos outros quatro. Enquanto os demais formam laços sociais, o
discurso do capitalista os foraclui. Lacan o descreve como um deslizamento do
discurso do mestre, em função de uma modificação no lugar do saber.
Neste discurso, não há relação entre o agente
e o outro, e, por isso, não faz laço. Há um endereçamento dos objetos de
consumo produzidos pela ciência e tecnologia (a) ao sujeito ($), foracluindo o
laço social. O sujeito passa a ser reduzido a um consumidor, enquanto o objeto
causa de desejo se torna um gadget. Assim, o saber desse discurso é o da ciência/tecnologia,
enquanto o significante mestre o poder, é o capital. No discurso do
capitalista, o sujeito comanda e o objeto a passa a comandá-lo, o circuito
passa a ser fechado. Seu matema evidencia dois imperativos de gozo: Produza e
consuma!
Lacan, em Televisão (1974), apontou o discurso do capitalista
como o discurso da ciência. Anos antes, no seminário do Avesso, já havia
feito essa relação com o do universitário. O discurso universitário tem o saber
como agente e o a está a serviço do discurso do mestre. Quem trabalha é o a, o
estudante, que Lacan define como “astudado" porque, como todo trabalhador,
precisa produzir alguma coisa. A verdade do sujeito nesse discurso é rejeitada
em prol do mandamento de tudo saber.
Na estrutura desse
discurso, a transmissão do conhecimento sempre ignora o resto que se mantém em
qualquer relação de ensino. A natureza da verdade nesse discurso tem a pretensão
de anular seu valor fundamental, de não toda; tem a pretensão de apresentar uma
verdade que seja integralmente transmissível. A transmissão que Lacan faz e nos
convida a trabalhar é a partir de outro lugar, ele fala
do lugar de analisante, uma transmissão que se difere de ensino e sustenta a
falta.
Já o discurso do analista tem o a como
causa. Ele não mascara ou recobre a castração com o saber; opera a partir dela. “É o próprio sujeito que, no curso da análise,
extrai a partir dele mesmo o Saber sobre o que causa o seu sofrimento.” (Souza,
p.84) Lacan afirma que “é pelo discurso do analista que existe alguma chance de
obter outro estilo de significante-mestre, e , ainda, que pode ser destilado um
significante “menos tolo”. O discurso do analista diferente de outros
discursos, como a ciência e religião, faz reinar o objeto a.
Segundo Vegh, o discurso não vem pronto; são
necessárias operações
para que se passe do campo da linguagem à função do discurso. Uma análise se
inicia desde que se funde uma demanda, um desejo de saber que se dirige ao
outro. "É necessário que o sujeito se situe como a histérica com seu
sintoma, diz de seu sintoma mas ignora sua razão, dirige ao outro a interrogação
de seu sofrimento". (p.147). Na impossibilidade que opera em todos os
discursos, sempre haverá uma falta, e, com ela a possibilidade dos giros e
trabalho. A verdade é sempre semi-dita e seu lugar em cada discurso revela, nos
matemos de Lacan, aquilo que se encontra velado nos laços sociais.
Quando intitulo meu trabalho como Os
discursos, hoje, no avesso da psicanálise poderíamos pensar, à primeira
vista, nos discursos que predominam hoje: o universitário, o capitalismo,
concomitante ao da ciência, no avesso da psicanálise. O "avesso" como
um significante que indicaria um contrário, um outro lado. Retomei passagens
onde Lacan faz uso desse termo e busquei referências em artigos, autores e
psicanalistas, pois fui causada a tentar formular algo com isso, para além
desse primeiro sentido que coloquei acima. O que seria, então, esse avesso nas
passagens de Lacan? O que ele queria transmitir ao falar da psicanálise pelo
avesso? Reforçando: transmitir, causar,
provocar movimento e trabalho.
"A psicanálise pelo avesso, pensei
que assim devia intitular meu seminário”, já anuncia Lacan na primeira aula do
seminário 17. Em seguida, observa: “Não creiam que esse título deva algo à atualidade,
que se julgaria em vias de virar ao avesso um certo numero de lugares” . (p.10)
Aurélio Souza aponta que esse
significante, “avesso", já havia sido utilizado em outra ocasião, em 1966, como um artifício para promover uma
releitura de Freud. Ele afirmava que era necessário uma "retomada do projeto freudiano pelo
avesso”, que se pudesse tomá-lo num percurso equivalente a uma fita de Moebius
e construir um novo discurso que viesse servir para estruturar o mundo real.” (p.
91)
Na mesma aula, Lacan comenta sobre este
uso anterior, dizendo que já estava ali bem antes dos acontecimentos. — em
1969 acontecia um movimento politico social dos estudantes, com inúmeras
manifestações, palavras de ordem e agito — Ele afirma que o que está em
questão é o discurso como
"estrutura" necessária, “que estrutura em muito a palavra,
sempre mais ou menos ocasional. O que, prefiro, disse, e até proclamei um dia, é
um discurso sem palavras". "É que sem palavras, na verdade, ele pode
muito bem subsistir. Subsiste em certas relações fundamentais."
"Mediante o instrumento da
linguagem instaura-se um certo numero de relações estáveis, no interior das
quais certamente pode se inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais
longe do que as enunciações efetivas.“ (p.11)
Na lição quatro ele coloca que: “O avesso não
explica nenhum direito. Trata-se de uma relação de trama, de texto — de tecido,
se quiserem. Só que esse tecido tem um relevo, ele pega alguma coisa. Claro, não
tudo, pois a linguagem mostra preciosamente o limite dessa palavra que só tem
existência de linguagem. Mostra que, ,mesmo no mundo do discurso, nada é tudo,
como digo — ou melhor, o tudo como tal se refuta e, mesmo se baseia, em ter que ser reduzido
em seu emprego.” (Lacan, p.56) Isso para demonstrar o que é um avesso. Avesso é
assonante com verdade.
No Seminário
18, de um discurso que não fosse
semblante, Lacan coloca: “O discurso do
mestre não é o avesso da psicanálise, é
o lugar em que se demonstra a torção própria, eu
diria, do discurso da psicanálise.” ( p. 9)
Ele faz essa relação com a estrutura da banda de moebius.
Nos meus
achados, encontrei algumas leituras que apontavam que o discurso da psicanálise seria o
avesso do discurso do mestre. Outras de que o avesso seria a parte sob a barra, a parte
que não seria do semblante.
O que faço com isso até aqui é considerar
a psicanálise pelo avesso como estrutura:
tomar o discurso sem palavras, a estrutura dos matemas que sustentam as
letras. A estrutura discursiva é o avesso , a base sobre a qual eles se
constroem. O que determina os lugares de cada elemento é o que define a
efetividade de cada discurso. A psicanálise
pelo avesso é olhar e identificar a estrutura do discurso.
O título desse trabalho: Os
discursos, hoje, no avesso da psicanálise me faz pensar na leitura atenta, contínua e renovadora que precisamos
fazer das estrutura discursivas de cada tempo.
Freud já dizia, em 1930, em O mal
estar na cultura que: "nossas possibilidades de felicidade são sempre
restringidas por nossa própria constituição” (p. 84) e que estar inserido na
cultura significa viver em constante mal-estar — o que é inerente à condição
humana. Não dando ao real o seu lugar, os humanos, nessa cultura do imediatismo
e ideais inatingíveis, que exclui o impossível e atropela o passo a passo,
retomo a questão que propus: qual é nosso lugar e responsabilidade com o
discurso da psicanálise para sustentar sua existência e sobrevivência em intenção
e extensão?
Melman, ao ser questionado se, em meio ao
dispositivo dessa nova economia psíquica, o analista poderia ficar como um último
porto para o sujeito, concorda que, ”diante do progresso notável da ciência, a
existência do inconsciente seguramente é um refúgio para a humanidade. É, por
fim, o último lugar que fornece um abrigo para o sujeito, o coloca em posição
de operar uma retirada, então, de lançar um olhar para o desenrolar de sua vida”
(p.131). Porém insiste na pergunta: “O que pede por existir por se tornar
sujeito, vai perseverar e terminar por encontrar outra via e, através disso
reencontrar sua voz?” (p.182) O mutante da nova economia psíquica vai dever
encontrar com o que se sustentar de outra maneira ou, ao contrário, só pode se
cumprir na autodestruição?
A
emergência de operação com a psicanálise é gritante em um tempo desafiador. Os
desafios na cena analítica desde fundar
uma demanda de análise e fazer com que o discurso se histericize, quando a
procura se dá por outras vias e o sujeito está apagado ou abarrotado de saberes
sem se interrogar, até questões ligadas à associação livre, ao deslizamento
significante, à passagem ao divã, à frequência e aderência ao ritmo e
funcionamento da análise. Há ainda desafios colocados pela tecnologia e pelos gadgets,
que também invadem a cena analítica.
As intervenções do analista promovem
encontro do sujeito com o desejo, enlaces do gozo com a castração. Não há possibilidade
de orientar desejo sem uma perda de gozo. É fundamental uma aposta no sujeito
que pede por "existir". Operações na aposta de fundar uma demanda
analítica para sustentar essa experiência que faz girar, pois ,se não gira,
range, e a partir dos giros, que o sujeito possa aparecer.
Segundo Vegh, o lugar do analista nos
giros é o de
sustentar várias faces do objeto a. Ele
arrisca dizer que: “toda a arte da análise dependerá de como o
analista poderá oficiar como se fosse este objeto a". (p.126) Nesse percurso, essa experiência promove
perda de gozo e queda dos ideais, opera com os impossíveis, e a partir da
falta, causa. Na inscrição da falta promove desejo.
O discurso do analista é subversivo aos
demais; ele não pretende nenhuma solução.
É o único que dá ao real o seu lugar e impulsiona o ato analítico. Ele
reabre as fronteira entre o saber e a verdade. O analista com suas intervenções
pode despertar o sujeito e inseri-lo no laço social, produzir corte na relação
cíclica com o objeto e possibilitar alguma abertura. O analisante, assim, pode
produzir ficções que o satisfaçam e uma diferença em sua forma de sofrimento.
Pode passar de um
produto de discurso para agente de sua história.
Aurélio nos dá esperança¹ ao dizer
que uma
análise “pode levar o
sujeito a cada vez mais se implicar em lalíngua, a ficar cada vez mais “dupe"de
um somatório de lalíngua." Assim, “o sujeito pode ocupar uma nova
posição onde venha a amar o inconsciente que o determina. A ficar desperto e
esperto diante das ilusões imaginárias que suas realidades plurais instituem — e
principalmente nestas relações com o “os-bjeto.” (p.214) Ele coloca que a política
de ambos, da psicanálise e do analista, é de tomar como um dever ético ir ao
encontro do real ou revelar essa noção da estrutura como um “buraco” que
determina um desejo sem “objeto” e uma contingência com “aperitivos” de gozo.
No horizonte de nossa época, nós como
trabalhadores decididos da psicanálise somos responsáveis por sustentar sua ética
e fazê-la circular: ética da incompletude, ética do desejo. O que podemos,
desse lugar, promover com o discurso da psicanálise? Em tempos de oferta de
cursos, formação, marketing e fast-food, como fica a questão da produção de um
analista?
Sabemos que a função analista é evanescente,
que participa ali em análise do inconsciente construído em transferência. A
produção fundamental para ocupar o lugar e operar com essa função leva tempo,
muito trabalho, análise pessoal, análise de controle, teoria e troca entre
pares. É um processo; a palavra já diz: desde sua origem no latim processus,
curso de algo, desenvolvimento. Ela está ligada à ideia de movimento e sequência
de etapas. É um passo a passo, uma produção que exige tempo e voltas. Nada
pronto, nem rápido, nem fácil.
A cultura do passo a passo não está em
alta, e, escrevendo aqui, me lembrei de um texto da Zeila Torezan, que tem esse
significante como título, e vez ou outra gosto de revisitar: "Dizia Freud,
em 1916-17, que com a psicanálise não é possível que as coisas se deem de forma
fácil, breve e com alegria, tanto do lado do analisante quanto do
analista." Portanto, diz Zeila: “Creio ser necessário dispor de
tranquilidade e paciência que permitam suportar os processos de produção de um
analista, de construção de uma prática clínica e da condução de uma análise, os
quais, além de morosos e trabalhosos, são também intermináveis.”
A psicanálise é uma prática da leitura e, segundo Vegh, a
partir de uma posição de leitor, o analista faz texto do dizer do
analisante. Mudanças na posição do
sujeito e em suas formas de gozo podem ser propiciadas por essa experiência. O
sujeito, com essas rotações, fica disponível para a criação, a invenção e também
para a mudança de discurso. De um modo mais livre. Vegh diz: “o sujeito terá mais
swing, poderá variar seus passos.” (p.155)
Empresto de Vegh esse significante, swing, para
encerrar minha escrita.
O analista, participando do inconsciente
e do sintoma de seu analisante em transferência, opera a partir do desejo do
analista, sustentado por uma ética da incompletude. Sua prática exige rigor,
criatividade e swing — para as operações fundamentais que sustentam a prática
da psicanálise.
Swing e rigor podem soar paradoxais , mas falam
de movimento e criação sustentados por uma lógica estrutural.
Que façamos algo com isso — foi o pedido
de Lacan. Dar ao real o seu lugar, tanto na cena analítica quanto na transmissão: O analista,
operando através do discurso do psicanalista no avesso da psicanálise (isto é,
na estrutura) é um indicativo do que podemos sustentar para que ambos - o
sujeito e a psicanálise - "existam" e sobrevivam.
*Tá aberta a janela e a porta da
esperança! ²
Maria Gabriela Calegari, 15 de março de 2025.
Notas:
¹ ² - Alusão às brincadeiras que
surgiram nas discussões do dia anterior da jornada.
Referências
Bibliográficas:
FREUD,
Sigmund. Análise termináveis e Interminável. Obras completas, v.18. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras.
2010.
LACAN,
Jacques. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992.
LACAN,
Jacques. O seminário, livro 18. De um discurso que não fosse do semblante.
Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
MELMAN,
Charles; LEBRUN, Jean-Pierre. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
SOUZA, Aurélio.
Os discursos na psicanálise. 2. Ed. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2008.
TOREZAN,
Zeila. Passo a passo. Associação Livre Psicanálise em Londrina. Disponível
em: https://www.associacaolivrepsicanalise.com.br/publicacao/passo-a-passo.
VEGH,
Isidoro. Os discursos e a cura. São Paulo: Escuta, 2001.