O Sinthoma e as Estruturas Clinicas
O estudo do Seminário 23 de Lacan (2007), o sinthoma, foi um convite para pensar o Sujeito e a Estrutura, tema que diz respeito ao eixo que norteou os trabalhos realizados esse ano na Associação. Diante disso teço aqui algumas considerações e pontuações que foi possível fazer a partir desse estudo.
Nesse momento de seu ensino Lacan (2007) trabalha a topologia demonstrando, na forma como constrói e desconstrói o nó borromeu, que não se trata de uma estrutura que busca dar conta de descrever uma configuração totalizante a respeito do sujeito.
Essa estrutura que é configurada pelos registros enodados do Real, do Simbólico e do Imaginário, possui uma propriedade estrita de que: ao se separar um dos registros o nó se desfaz, condição, que como nos lembra Harari (2002), é confirmada no só depois, como uma produção resultante do processo de subjetivação do sujeito. Nesse ponto lembramos que o sujeito da psicanálise é um sujeito de estrutura que se constitui em tempos, em que funções e operações devem acontecer. Em cada etapa da operação, nesses tempos lógicos de subjetivação, Alba Flesler (2012) localiza a predominância de um dos registros. O que essa predominância vem nos indicar não é a prevalência de um registro sobre os demais, Lacan (2007) deixa claro que nenhum dos registros tem maior importância do que os outros. Antes disso essa predominância aponta para os limites que cada registro faz sobre o outro. Harari (2002) lembra que ao utilizar da planificação da topologia do nó, Lacan (2007) torna possível pensar nas invasões, avanços ou imisções de cada um dos registros nos demais, além do objeto a que é posicionado no centro dessa estrutura. Lacan (2007) assinala que essas invasões funcionam como nomeação, assim na nomeação do Imaginário temos a Inibição, na nomeação do Simbólico o Sintoma e na nomeação do Real a Angústia. A nomeação é atributo da função Nome do Pai, que de acordo com Vegh (2009) permite fazer furo no gozo. Cada uma dessas invasões anuncia a necessidade de um gozo a ser perdido, orientando o nó em um bom enlace. Assim bem orientado, cada registro pode fazer-se limite e, portanto, nome do pai aos outros registros. Esse bom enlace não significa, no entanto que não haverá falhas e cada um vai encontrar a sua forma de suplência. A boa orientação da estrutura, como já assinalado, também não significa que nenhum mal estar se produza, mas se não for assim pode ser pior.
Lacan, nesse seminário analisa como Joyce pode através de sua escrita produzir a sua forma de suplência. Harari (2002) faz uma importante observação sobre o trabalho realizado por Lacan (2007) a respeito de Joyce em que “a tarefa reside em pôr o acento na função da obra, implicando o seu autor” (p.47), e aqui podemos entender implicando a sua estrutura. Nesse sentido, a partir de observações realizadas por aqueles que antes dele se dedicaram a estudar Joyce, e também pela leitura atenta de sua obra, Lacan (2007) destaca o caráter autorreferente de sua escrita. Fato que o leva a indicar a falha na função Nome do Pai na estrutura de Joyce. No livro de Joyce, “O Retrato do artista quando jovem”, o pai do protagonista, é inspirado no pai do autor, John Joyce, ele é descrito nesse texto como alguém decadente, ordinário, um pai falido (Bulcão, 2014). Se a função Nome do Pai é fraca o atributo de nomeação também o será, comprometendo o bom enlace da estrutura. Em Joyce Lacan (2007) afirma haver um erro no nó, que fazia com que o imaginário se perdesse. Sobre isso Vegh (2009) destaca, como uma descrição dessa perda do Imaginário, um paragrafo do “Retrato do artista quando jovem” (Joyce, 1986, apud Vegh 2009). Nessa passagem há um relato de quando os companheiros do protagonista, Stephen Dédalus, o castigam batendo nele com uma surra terrível, porque ele se nega a corrigir sua afirmação sobre quem seria o melhor poeta inglês. Sobre essa surra diz: “que o que mais o surpreende é que não consegue sentir ódio, que o ódio se vai como se a pele se desprendesse” (Vegh, 2009, p.70).
Em seu seminário Lacan (2007) deixa-se interrogar sobre as relações formais em jogo na escrita de Joyce, e como ela, como uma criação do autor faz suplência à função nome do pai. Formando um quarto aro que enoda os demais registros para que a estrutura não se desfaça. Funcionando assim como sinthoma.
Pretendo aqui, de forma simples, destacar algumas das características desse enodamento que Lacan (2007) desenvolve ponto a ponto nesse seminário. Começo pela distinção do sintoma, entendido como o que na estrutura se apresenta como efeito do Simbólico no Real, e o sinthoma com th, que em Joyce tem o efeito de suplência. No primeiro o sujeito está implicado quando diz tê-lo e padecer dele, obstruindo o seu impulso e restringindo a sua margem de liberdade (Harari, 2002). Ele se apresenta como uma mensagem que é dirigida ao Outro. Assim nos diz Lacan (2007) ele é transitivo, nele há dois devido a essa referência que se faz ao Outro. Esses são aspectos que não se apresentam na escrita de Joyce. Harari (2002) observa que embora Joyce tenha se preocupado em publicar os seus escritos, ele dá muito mais importância a sua invenção do que a sua circulação. Sobre isso Lacan destaca a autossuficiência de Joyce como uma formação psíquica em hiância com o Outro (Harari, 2002, p.215). Para Lacan (2007) o número do sinthoma é um, pois ele é intransitivo, comporta uma constelação psíquica intransitiva. Não transita entre o sujeito e o Outro, não dirige ao Outro nenhuma mensagem a ser decifrada.
A sua obra é um artificio que ele cria e que torna possível para ele se libertar de uma linguagem adquirida, que nem é criada por ele e nem pode ser usada, um idioma que não faz relação com a função Nome do Pai. Esse artificio que ele cria, com a sua escrita inventiva, é para ele inconsciente, ou seja, ele o faz sem saber. O que faz com que Lacan (2007) afirme ser ele um artista. Uma arte que como aponta Harari (2012) consegue tocar em pedaços do real, fazendo sulcos, em uma prática que ele faz com ardor.
Esse quarto aro que Joyce artificia com a sua escrita é singular, como o que o distingue não o incluindo em um caso geral. Tomando Joyce como paradigma Lacan (2007) nos mostra que diante da demanda do Outro o sujeito pode responder com um “mais isso não”, uma resposta que tem um valor não negociável, não tramitável, onde se assenta a sua singularidade.
Finalizando gostaria de acrescentar que Lacan (2007) nos convida, nesse seminário, à desconstrução. Desfazer para fazer de outra forma e ainda mais uma e quantas forem. Trabalho que alcança a clinica, e que nos leva a sempre considerar o espaço que o sujeito tem para, como artificie, transformar o seu sofrimento em criação, em um “fazer com” se valendo de sua estrutura.
Autora: Mônica Maria Silva
Psicóloga clinica CRP 08/14090
Clinica L´espacepsy Psicanálise
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina.
Texto apresentado na II Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – 21 e 22 de Novembro de 2014
Referência Bibliográfica
Bulcão, M.S.M. Sintoma e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce. Retirado de Harari, R. Como se chama James Joyce?: a partir do seminário Le Sinthome de J.Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002
Flesler, A. A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012
Lacan, J. O seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Vegh, I. A angústia e a orientação do sujeito. Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 60-74, jan./jun. 2009.
Deixe uma resposta
Want to join the discussion?Feel free to contribute!