Primeiramente, gostaria de agradecer aos colegas da comissão de coordenação que tanto se empenharam para realização de mais uma jornada. Cumprimento também as colegas da mesa e, especialmente, a Denise que topou participar e contribuir com a nossa jornada.
Gostaria de
iniciar meu trabalho fazendo algumas considerações sobre o meu título. Para
isso, cito Lacan:
A Terceira – é o título. A terceira ela volta, é sempre a primeira, como
diz Gérad de Nerval. Objetaremos que faça disco (disque)? Por que não, se
diz-o-quê (dit-ce-que). Ainda seja preciso, esse “dit-ce-que”, ouvi-lo, como,
por exemplo, o disco-urso de Roma.
Mais para
frente, Lacan continua:
Em poucas palavras, é por ser de idioma francês que o discurso de Roma
pode se ouvir como disc-urdroma (Disque ourdrome).
Em um simples
título, O discurso de Roma, Lacan extrai, com toda sua habilidade de ouvir,
muitos efeitos polifônicos que apontam questões que, para mim, podem ter uma
articulação com o tema de nossa jornada. O primeiro ponto é que a partir do
poeta francês Gérad de Nerval, Lacan já ressalta a característica
“revolucionária” da teoria dos discursos, cujo movimento é sempre retornar ao
mesmo ponto por meio de quarto de giros. O segundo ponto é a referência ao
objeto disco que, ao mesmo tempo que gira passando pelo mesmo lugar fazendo
alusão a repetição, produz uma sonoridade. O terceiro ponto é a condensação de
disco com o animal urso (disco-urso). E por fim, afirma que no idioma francês
se pode ouvir “disque-ourdrome”, que em alemão podemos ouvir “ur-traum”, que
significa sonho originário ou primordial. Sobre esse último ponto, peço
desculpas por não poder referenciar o autor ou autora dessa sacada, pois no meu
texto havia somente uma anotação despretensiosa fazendo uma correlação entre
“oudrome” e “urtraum”.
Foi na intenção
de condensar todos esses elementos que acabei de descrever e propor uma
articulação com a temática da nossa jornada que pensei no título do meu
trabalho: o dizco-urso do psicanalista, hoje. Observem que muito do que Lacan
(A Terceira) aventa como possiblidade polifônica é, a meu ver, essa
característica de um adormecimento profundo. Penso que seja nesse sentido que
coloca a palavra “urso” junto com “disco”, pois esse animal sabe como dormir.
Diz-se em média de 5 a 7 meses por ano! Entretanto, há um ponto paradoxal que
não devemos desconsiderar, já que Lacan nos ensinou, e isso também no âmbito da
clínica, que os paradoxos tendem a ser profícuos. O paradoxo do título “O
discurso de Roma” é justamente que o disco que leva ao adormecimento, é também
por meio dele que se desperta, já que se propõe revolucionário, no sentido
lacaniano, que é girar e retornar ao mesmo lugar.
Proponho outro
ponto de partida, que diz respeito a minha própria clínica e do que acompanho
em algumas supervisões, bem como algumas questões que surgiram em nossos
encontros ao longo do ano em que trabalhamos a temática de nosso eixo.
Recordo-me em vários encontros fechados e abertos em nossa associação em que
nos questionávamos acerca de uma questão clínica de que atualmente nossos
pacientes têm uma apresentação clínica mais grave e certa dificuldade em
associar e trabalhar pela corda do simbólico, resultando em uma deficiência de
metaforizar o sintoma e metonimizar o objeto. Há, aproximadamente, 18 anos que
tive meu primeiro contato com a clínica nos estágios na faculdade e desde então
já escutava os clínicos daquela época falando em uma subjetividade diferente.
Deram alguns nomes para isso, tais como fenômenos de borda, sujeito em
estado-limite, melancolização, borderline, etc. Lembro-me, como se fosse hoje,
das aulas que tive em psicopatologia em que a Zeila trabalhava isso na
disciplina. Ouvia com muita atenção que se tratava de uma clínica em que se
falava de um empobrecimento simbólico que não se alcançava a estrutura do
sintoma. Por isso se chamava de “fenômeno”. Uma frase que restou daquela época:
“elevar o fenômeno à condição de sintoma”. De uma maneira simples e resumida, a
proposta era fazer com que um sofrimento, que podia ser físico ou psíquico,
fosse tramado pela rede simbólica para assim poder ser tratado pelo dispositivo
clínico da associação livre. No entanto, essas ideias já estavam sendo trabalhadas
muito antes disso. Então não se tratava, realmente, de uma tendência teórica
momentânea, pois ainda hoje estamos às voltas com isso.
Tem um trabalho
que fiz sobre o seminário 17 para uma jornada de Cartel em que parti do
discurso universitário para pensar sobre essa questão clínica apontada por
Lacan que é esse grude que o falasser opera entre Saber e Verdade e assim fica
fixado em um único discurso. Penso que esse é um dos pontos que Lacan (1969-70)
expõe nesse seminário onde muitas vezes deixou indicada certa relação entre
discurso universitário, discurso do mestre e capitalista. E a proposta era que
o analista pudesse operar sendo “revolucionário”, isto é, fazendo o analisante
circular pelos discursos, já que “o que não roda, range”. Dessa maneira, o
Saber é, como diz Lacan (1969-70), “evacuado” do lugar da Verdade.
O que me
intriga, e que se tornou a questão principal desse trabalho, é o por quê Lacan
(1972) precisou formular uma nova estrutura de discurso em que produz uma
infração, ou como diz Aurélio Souza, um “pequeno truque”, justamente no
discurso do mestre, ao propor uma inversão de posições entre S1 e $ e uma
mudança de direção na seta: em vez de ir para cima, partindo da Verdade, vai
para baixo, permitindo um acesso a ela.
Pensando em uma
resposta possível, poderíamos conjecturar que era para propor uma leitura do
contexto social que estava presenciando e também de sua clínica. Mas, para mim,
ele já tinha feito isso com eficiência, ao articular o capitalista ao mestre
moderno que soube se aproveitar do discurso da ciência para continuar sua
lógica. Isso é notório quando aponta que, apesar das manifestações de Maio de
68, que teve participação universitária, o capitalista não se sentia ameaçado.
Isso devido ao S1, isto é, ao que chamou de mestre moderno, que ainda subsistia
na posição da Verdade nesse discurso. Em todas as passagens do seminário 17 em
que Lacan se refere ao capitalista e ao discurso capitalista, não podemos
vislumbrar o “pequeno truque” que propõe em 1972 na conferência “Do discurso do
psicanalista”. Nessa conferência, afirma algo que me chama a atenção, de que o
discurso capitalista substitui o discurso do mestre.
Vejam o que nos
diz Lacan (1972):
Enfim, é afinal o que se fez de mais astucioso como discurso. No entanto,
está fadado ao colapso. É que ele é insustentável. É insustentável… por uma
razão que eu poderia lhes explicar… porque o discurso capitalista está aí,
vocês veem… uma pequeníssima inversão simplesmente entre o S1 e o S…
que é o sujeito… isso basta para que funcione perfeitamente, não poderia
funcionar melhor, mas justamente funciona rápido demais, consome-se, consome-se
tão bem que se destrói.
Essa citação me
faz questionar o que seria isso que se consome a ponto de se autodestruir.
Olhando sua estrutura, o que me salta aos olhos inicialmente é justamente a
Verdade que está em uma relação direta com o $ e a ausência de seta em direção
ao Outro, que estabeleceria o laço social. Isso me remete a uma passagem em que
Lacan (Seminário 17, 1970) nos alerta de que não devemos nos colar
demasiadamente na verdade barroca, pois ela intoxica. E o que seria o $ colar
nessa Verdade em que está situado o significante-mestre (S1)? Vejamos como
Lacan define esse conceito, agora pautado no trabalho que está realizando no
seminário 19 sobre o Um, já que essa conferência é contemporânea ao seminário.
Trago aqui mais
uma citação da conferência “Do discurso do psicanalista”:
[...] no nível do discurso do mestre, aquilo que há pouco chamei de significante-mestre,
é isso, é do que estou tratando agora: há d’Um. O significante é o que
introduziu no mundo o Um, e basta que haja o Um para que isso… isso comece,
isso comande S2 (o discurso do mestre). Mas é justamente por esse
privilégio único, essa primazia singular, essa existência inaugural que
constitui o significante… que, pelo simples fato de haver a linguagem, o
discurso do mestre funciona.
Para atribuir a
devida importância ao discurso do mestre, Lacan (1972) o qualifica de discurso
fundamental, na medida em que funda a estrutura mínima do par significante:
S1-S2. Não é a toa que o título do seminário 17 faz referência direta ao
discurso do mestre, já que é ele que está no avesso da psicanálise, e Lacan
fala dele do começo ao fim. Nesse seminário, Lacan afirma ser o primeiro que
surgiu, pois sem o ordenamento da linguagem pelo discurso do mestre, não é
possível o surgimento dos outros discursos, inclusive o discurso do
psicanalista.
No seminário 19
( ...Ou pior), Lacan está se dedicando a trabalhar de forma lógica o conceito
de Um. Não vou aqui me deter sobre esse desenvolvimento teórico de Lacan –
talvez o faça na próxima jornada de cartel – mas o que está em jogo é a
intenção de continuar formalizando, a partir da lógica, o conceito de castração
que culmina no aforismo: “Existe um X que não passa pela castração”. É o
Um, que está em posição de exceção, que garante a verdade lógica do conjunto
fechado da significação fálica, que é o S2. Portanto, S2 é comandado pelo S1,
que representa justamente a relação Senhor e Escravo no discurso do mestre. No
discurso capitalista, por sua vez, o $ em direção ao S1 é um curto-circuito na
teoria do significante, já que o S1 é que pode representar o $ para outro
significante (S2).
Será que
poderíamos pensar que esse curto-circuito no par significante compromete os
efeitos de significação que seriam correlativos a esse Um (x) que está fora da
castração? Não seria esse efeito que mencionei acima sobre os pacientes que têm
dificuldade de metaforizar o sintoma e metonimizar o objeto, mostrando certo
aprisionamento ao campo da significação fálica? Ao se relacionar somente com a
Verdade, e não mais fazendo laço com o Outro, será que não poderíamos aproximar
o efeito de intoxicação pela Verdade que falou no seminário 17?
Para quem já
trabalhou o seminário 10 – A angústia – certamente se lembra de uma passagem em
que se fala de uma espécie de intoxicação do bebê pelo que resta da mãe e que
invade os orifícios nasal e oral no momento do seu nascimento. Essa intoxicação
é proveniente de algo que chega de “fora” e que reduz o bebê a uma condição de
objeto, pois não consegue dar conta disso sozinho. Seguindo essa linha do
seminário 10, proponho pensarmos que a intoxicação pela Verdade é a que promove
a passagem de sujeito a objeto, que pode ser vista pela seta que retorna do
objeto @ em direção ao $. Assim, o $ se destrói ao ser identificado ao @. Como
citei Lacan acima: “consome-se tão bem, que se destrói”. Nesse discurso, é
incitado pelo mestre moderno (S1), que está na posição da Verdade, a consumir
as latousas fabricadas pelo Saber da ciência. O que retorna disso, é que no fim
acaba se tornando um objeto a ser consumido e destruído. Penso ser nesse
sentido que Aurélio Souza afirma em seu livro que o sujeito, nesse discurso, ao
“rejeitar a castração” pelo acesso direto ao objeto, produz uma suspensão da
divisão subjetiva (p.139). Se a divisão subjetiva está suspensa, isso diz
respeito a lei significante, pois o S1 representa o $ para o S2.
O discurso do capitalista e a subjetividade, hoje...
Quando Lacan
afirma na conferência “Do discurso do psicanalista” que o discurso
capitalista substitui o discurso do mestre, que é o discurso fundamental
que organiza a linguagem nas leis do significante, será que ele não estaria
propondo que outro discurso fundamental estaria marcando um novo tempo? Julgo
ser um caminho a ser pensado, pois ele poderia ter considerado o discurso
universitário, por exemplo, para fazer esse “pequeno truque”. Se assim o
fizesse, ele não estaria alterando esse primeiro discurso que dá origem aos
outros três. Logo, se assim o fizesse, ainda estaríamos na lógica do discurso do
mestre e na formação do par significante.
Se o discurso do
mestre faz um aparelhamento de gozo e organiza os outros discursos (DU; DA;
DH), o discurso capitalista, que seria seu substituto, também não deveria
organizar outros discursos? Acredito que sim e vejo que Lacan dá um caminho
para pensarmos isso com relação ao psicanalista e batiza esse “novo” discurso
de “PST”. Vejamos outra citação:
"Agora vocês estão embarcados… estão embarcados (no discurso
capitalista)... mas há poucas chances de que algo realmente sério aconteça ao
longo do discurso analítico, exceto assim, bom, por acaso. Na verdade, acho que
não se falará do psicanalista na descendência, por assim dizer, do meu discurso
analítico. Algo diferente surgirá, que, é claro, deverá manter a posição do
semblante, mas ainda assim será... mas talvez se chame o discurso PS. Um PS e
depois um T, aliás, será totalmente conforme à maneira como se diz que Freud
via a importação do discurso psicanalítico para a América... será o discurso
PST. Adicione um E e isso dá PESTE" (Do discurso do psicanalista, 1972).
Claramente Lacan
está fazendo uma correlação entre o capitalismo dos EUA e a importação da
psicanálise por lá. Uma vez que se embarca no discurso capitalista, é um
caminho sem volta, e que assim há um processo de descontinuidade entre o
discurso do analista dos EUA e do discurso do psicanalista proposto por ele
próprio. Afirma que algo diferente surgirá e que batizou de discurso PST-PESTE.
Ele não fez uma escritura, mas me parece que propôs um discurso derivado do
discurso capitalista. Hoje sabemos que esse discurso capitalista não é
exclusividade dos EUA, mas está presente em quase todos os cantos do mundo
globalizado. Questiono-me se essa onda de psicanalistas das redes sociais não é
fruto desse discurso PST-PESTE. Tenho acompanhado muitas ofertas de serviços de
mentoria do campo psi e de psicanalistas que estão ativamente nas redes
utilizando de estratégias para captar pacientes ou vender cursos. Vejam o que
me disse um paciente enquanto relatava seu conflito em se expor nas redes com
uma imposição dos colegas de que só assim poderia melhorar sua clínica.
“Expor-me nas redes sociais para conseguir pacientes me dá a sensação de como
se fosse um restaurante expondo o cardápio do dia para ser consumido por algum
cliente”. Sem se dar conta, ele diz que não é o cozinheiro, mas a própria
refeição a ser servida. Entendo que esse paciente fala dessa objetalização que
se oferece ao consumo. O psicanalista que utiliza as redes sociais para captar
pacientes, está se oferecendo como objeto a ser consumido. Em contrapartida, ao
mesmo tempo que produz conteúdo para engajar seus seguidores que são potenciais
clientes consumidores, os consome. Reitero: “consome-se tão bem, que acaba
destruído”. Certa vez estava assistindo a um debate, que era fora do nosso
campo, sobre essa questão da exposição nas redes sociais, eis que surge uma
fala muito importante e que está alinhada com a fala do meu paciente: “quando
estamos assistindo algo gratuito nas redes, temos a impressão de que estamos
consumindo um conteúdo, mas na verdade somos nós os consumidos”. Em se tratando
do campo lacaniano, certamente não poderíamos estabelecer essa psicanálise das
redes sociais na descendência do discurso do psicanalista formulado por Lacan.
Outro discurso
que, a meu ver, considero como derivado da organização subjetiva do discurso
capitalista, mas esse sim já com uma escritura formalizada, é o discurso do
a-viciado proposto por Aurélio Souza. Em seu livro, Aurélio nos pede
“tolerância e conveniência para seguir sua heresia”. Mas não acho que esteja
sendo herege; muito pelo contrário. A meu ver, ele está acompanhando Lacan
nessa outra lógica discursiva. Um dado que traz em seu livro é que muitas vezes
essas apresentações da clínica atual não são consideradas por alguns como
possíveis de serem tratadas pela psicanálise. Talvez fizesse sentido essa
afirmação se ainda pensássemos uma subjetividade exclusivamente organizada pelo
discurso do mestre, cujas intervenções estivessem orientadas pela lei do
significante. Entendo que o discurso do a-viciado propõe um caminho para pensar
essa clínica.
Para finalizar,
vou compartilhar mais uma reflexão.
Se considerarmos
as três conferências de Roma, constatamos, a meu ver, uma sequência lógica
muito interessante. Na década de 50, proferiu a conferência “Função e Campo da
fala e da linguagem em psicanálise” em que apresentava sua teoria significante
para os italianos, além de dizer que o psicanalista deve ser capaz de alcançar
a subjetividade de seu tempo. Na segunda conferência, que é “Do discurso do
psicanalista”, fala da teoria significante a partir do seu conceito de Um, mas
considera o agravante do discurso capitalista, cujo “pequeno truque”, operado
no discurso do mestre, afeta o S1. Mas nesse momento, para mim, não fica
evidente uma proposta de tratamento para essa subjetividade organizada por
outra lógica discursiva. E na terceira conferência de Roma, intitulada “A
terceira”, Lacan propõe a organização da cadeia borromeana muito próxima da
versão final. Se seguirmos esse fio, será que não poderíamos pensar que é na
terceira conferência que existe uma proposta para se pensar um tratamento
psicanalítico possível para esses casos da clínica atual? Será que nesse
momento não se fez disco?
Relembro a
citação do início do meu trabalho: